Para o governo, Equador é só felicidade e boas notícias
Não parece haver nada errado ou negativo em resgatar aspectos do conceito indígena de “sumak kawasay”, ou “viver bem”, dos povos andinos pré-colombianos, como inspiração para a vida moderna. Baseado na cosmovisão daquelas sociedades, o “sumak kawasay” é uma filosofia de vida que valoriza o comunitário e a relação com a natureza. Nos dias de hoje, é evocado para realizar a crítica das sociedades de consumo. Válido como princípio filosófico e cultural, porém, o conceito tem se prestado à manipulação e propaganda política no Equador do presidente Rafael Correa.
Evocado já desde a Constituição de 2008, o “buen vivir” vem ganhando espaço na mídia e no orçamento nacionais. Chamado jocosamente de “ministério da felicidade” pelos opositores, a secretaria do “buen vivir”, com status de ministério, emprega hoje 31 funcionários, tem no comando um ex-apresentador de sucesso televisivo (Freddy Ehlers) e gasta mais de US$ 2 milhões, anualmente, para produzir programas de TV e realizar eventos pelo país que ressaltam histórias de vida consideradas exemplares e, principalmente, mostrar como as comunidades andinas do interior podem até ser pobres, mas, segundo esse relato oficial, são felizes porque convivem sabiamente com a natureza.
Pois o “ministério da felicidade” voltou à pauta. Em meio a uma onda de protestos contra o governo, realizados em várias cidades do país, a secretaria anunciou que fará uma “medição da felicidade” para mostrar que os três mandatos do atual presidente fizeram dos equatorianos pessoas mais felizes. É certo que Correa [que almeja um quarto mandato] obteve bons resultados na queda drástica dos índices de pobreza, além de ter recuperado a estabilidade política de um país no qual vários presidentes não vinham conseguindo encerrar o mandato nos últimos tempos.
A situação hoje, porém, é outra. A bonança econômica vivida por conta do “boom das commodities” acabou e a queda do valor do barril de petróleo contribui para secar a verba que antes podia ser amplamente destinada a programas sociais. A insatisfação começou a se generalizar e a ganhar as ruas em forma de protestos e vigílias. E o presidente, cujo estilo autoritário não se pode ser escondido nem mesmo por trás de seu constante sorriso irônico, retrucou a seu modo, atacando e constrangendo ainda mais os meios de comunicação independentes, pelas vias economica e judicial, quando não processando diretamente a jornalistas e a donos de veículos. Mais do que nunca, Correa necessita que sua estratégia de comunicação o ajude a manter sua popularidade, que vem em queda. Portanto, mais espaço e mais orçamento são destinados à propaganda, às atividades da secretaria de “buen vivir” e a seu programa semanal, o “Enlace Ciudadano”, em que passa horas e horas discursando e conversando com apoiadores em várias partes do país.
Vozes corajosas defendendo a liberdade de expressão vêm sobrevivendo como podem. O cartunista Bonil, que publica suas tiras em “El Universo”, é um deles. Já condenado uma vez a nada menos que redesenhar um cartum do qual Correa não gostou, e processado por outros casos, Bonil acaba de ser reconhecido com o prêmio “liberdade de imprensa”, da Sociedade Interamericana de Prensa. No texto que anunciou seu nome, nesta semana, a SIP declarou: “pela alta qualidade de sua produção e a valentia em defesa da liberdade de imprensa e de expressão, e em representação exemplar dos jornalistas equatorianos, submetidos ao acosso governamental”.
Nas ruas, os ânimos não se acalmam. Enquanto um protesto da oposição pedia o fechamento da secretaria do “buen vivir”, desfilando com um imenso boneco representando a Freddy Ehlers, o jornalista Christian Zurita, que lançou um livro denunciando envolvimento de Correa em casos de corrupção ao lado do irmão, foi agredido num protesto em apoio ao presidente. Os próximos meses, nos quais o governo lançará políticas de ajustes para enfrentar a crise econômica e a Assembleia decidirá se Correa pode ou não concorrer a um quarto mandato, prometem ainda mais tensão no país andino.