Coisas e histórias da Bolívia, por Alex Ayala

Sylvia Colombo

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“No número 975 da rua Linares de La Paz, há um lugar que todos os dias abre suas portas a outra época. Seu interior é quase como uma cova: o teto baixo, a luz tênue, o ambiente íntimo. E sua decoração, como o cenário de um filme do século passado: diante de uma porta, uma roda de carruagem, nas alturas, garrafinhas de farmácia de porcelana e vidro; numa vitrine, câmeras de foto sem riscos; debaixo de um espelho, um telefone de pé de cor negra; num móvel de corredor de verniz intacto, um calculadora de marca Marchant, para somar e dividir, pesa uns tantos quilos.”

A casa de Antiguidades que remete a outros tempos que viveu La Paz. A oficina de televisores que conserta aparelhos que já saíram há muito do mercado. O sujeito que planta bonsais japoneses de diversos tamanhos nas redondezas da capital boliviana e o economista que coleciona obsessivamente tudo o que tenha a ver com a seleção de seu país. Sua mais nova obsessão é o ingresso de um jogo em que a Bolívia perdeu para o Brasil por 8 a 0, em 1977.

Brasil 8 x 0 Bolívia, em 1977, procura-se um ingresso
Brasil 8 x 0 Bolívia, em 1977, procura-se um ingresso

Estas são algumas das 50 histórias que o jornalista espanhol Alex Ayala reúne em “La Vida de las Cosas” (ed. El Cuervo, importado). Radicado em La Paz desde 2001, Ayala chegou a Bolívia para passar um tempo, com uma bolsa. Trabalhou em algumas publicações locais, como o jornal “La Razón” e o semanário “Pulso”. Acabou tomando gosto pelas alturas e pelo friozinho constante da capital boliviana. Lançou uma revista de crônicas, a “Pié Izquierdo”, que após alguns números, acabou não vingando.

Com o tempo, porém, se transformou numa espécie de correspondente informal de várias publicações, além de anfitrião dos colegas que chegam para coberturas no país andino. Nos últimos anos, escreveu para o diário espanhol “El País” e para as revistas de crônicas “El Malpensante” (Colômbia), “Etiqueta Negra” (Peru), “Esquire” e outros.

Em suas andanças pelo interior e pelo altiplano, foi recolhendo histórias de vida, que para ele passaram a explicar o país melhor do que as decisões políticas que via serem tomadas na capital. Surgiu assim “La Vida de Las Cosas”, que ajuda a formar um panorama da sociedade boliviana em tempos de Evo Morales, a partir das obsessões de colecionadores compulsivos, como ele mesmo admite ser. O onipresente presidente boliviano, porém, não é personagem da obra.

Abaixo, uma pequena entrevista com o autor, feita por e-mail.

Folha – Você conta no livro que começou a se interessar pelo tema a partir de sua experiência particular como colecionador de coisas raras, desde pequeno. O colecionador e o jornalista são parentes?

Alex Ayala – Desde criança, mais do que colecionar coisas estranhas, eu gostava de guardar objetos que faziam lembrar de bons momentos. Sempre acreditei que os objetos guardam nossa memória. E penso que há muita energia neles. Tanto jornalistas como colecionadores se fixam nos mínimos detalhes, os dois sabem que nas pequenas coisas se condensa o mundo.

Folha – Há alguns personagens que são estrangeiros, e as peças que guardam servem de memória dos lugares que deixaram. Aconteceu com você, em sua mudança da Espanha para a Bolívia?

Ayala – Não creio que a nacionalidade tenha a ver com a relação que uma pessoa tem com seus objetos. Para mim, os objetos foram uma desculpa para conhecer as pessoas. E também para falar de personagens que me interessavam, de uma pessoa que conserta televisores antigos, de uma senhora que se muda de casa ou de um mago que, às vezes, não se lembra de onde deixa as coisas.

Folha – Um tema muito presente é o da herança, principalmente dos objetos que passam de pais para filhos. Nesse atual cenário de transformação causado pelo mundo virtual, crê que essa relação continuará existindo?

Ayala – Apesar de vivermos num mundo de obsolescência programada, considero que a tradição de herdar objetos familiares não desaparecerá nunca. Os objetos se relacionam muito com os sentimentos e, enquanto continuem nos fazendo recordar de coisas e fazendo-nos arrepiar, não nos desprenderemos deles. Pode ser que esteja pecando por ser demasiado otimista, mas é o que penso. Há alguns anos também se falava muito do fim dos livros impressos e se seguem publicando milhões deles todos os anos.

Folha – Por que o formato de histórias breves?

Ayala – “La Vida de las Cosas” foi pensado como livro, mas também como uma coluna de jornal, creio que funciona porque cada história é como essas batalhas que os avós contam para os netos. E todas são uma espécie de manual de arqueologia contemporânea, nos ajudam a compreender melhor o mundo em que estamos vivendo.

Folha – O futebol costuma ser uma obsessão de muitos colecionadores, e é curioso que o seu personagem desse estilo esteja buscando justamente o ingresso do jogo Bolívia x Brasil. Crê que o encontrará?

Ayala – O obsessivo nunca levanta a bandeira branca. O obsessivo conseguirá o que quer ou morrerá tentando. Sempre pensei que ser insistente ajuda. Uma vez fiquei tão obcecado por um livro do Gay Talese que estava procurando que não parava de repetir o quanto o queria para aquele que o tinha. O persistente quase sempre ganha.