O que significa a nova fuga do “Chapo” Guzmán?
Pergunte aos principais especialistas em narcotráfico na América Latina e eles concordarão num ponto: hoje em dia, os cartéis se transformaram em empresas com estruturas cada vez mais horizontais e lideranças mais diluídas. Ou seja, os grandes chefões são cada dia menos importantes numa atividade ilegal que exige mais especialização para atuar em distintas áreas, e maior descentralização, para alcançar distintos países e continentes. Tudo isso parece ser certo quando se analisa a diferença entre os cartéis de hoje e os hipercentralizados da época do chefão colombiano Pablo Escobar (1949-1983). Hoje, o cartel de Sinaloa, organização criminosa voltada ao narcotráfico mais importante do mundo, exporta cocaína, heroína e maconha para mais de 60 países. Usa aviões, submarinos, caminhões, carros e constrói imensos túneis perto da fronteira do México com os EUA. Escoa produção de outros países latino-americanos (como Colômbia e Peru), mas também produz em plantações e “cozinhas” clandestinas em território mexicano. Trata-se do primeiro a ter desbravado e aberto o comércio ilegal em grande quantidade de várias drogas ilegais produzidas em solo americano para a Ásia e a África.
O sucesso dessa empresa não se abalou na primeira vez em que seu líder, Joaquín “Chapo” Guzmán, foi preso, em 1993, na Guatemala. Pelo contrário, o negócio só fez crescer nos oito anos em que permaneceu atrás das grades, até escapar num carrinho de lavanderia da prisão, em 2001, pagando pela cumplicidade dos guardas nada menos do que US$ 2,5 milhões. Seguiu expandindo-se enquanto durou a longa busca de autoridades norte-americanas e mexicanas por ele, ao longo de 13 anos, toda ela noticiada e acompanhada praticamente em tempo real. E não se interrompeu também quando o criminoso foi capturado novamente, em fevereiro de 2014, num resort na cidade praiana de Mazatlán. Neste último sábado (11), “el Chapo” escapou outra vez, agora da prisão de Altiplano, por um túnel de 1,5km, e provavelmente acelerando uma motocicleta. A notícia causou alarme nos governos do México e dos EUA, virou trending topic no Twitter, despertou ira e paixões dos dois lados da fronteira e inundou a internet de coletâneas de suas histórias mais famosas, de videoclipes com “narco-corridos” (gênero que canta histórias do crime com base no folclore regional) em sua homenagem e de documentários sobre suas passagens mais aventurescas.
Mas, se os chefões do narco são cada vez menos importantes, por que cada prisão ou fuga do “Chapo” causam tanto alvoroço? A resposta está na capacidade de sedução que um bandido ao estilo Robin Hood como ele tem entre a população pobre (e não tão pobre assim) de um país convulsionado por um confronto que já matou 60 mil pessoas e cujo governo, principalmente em suas ramificações regionais, é conhecido pelos casos de corrupção e se mostra ineficaz para trazer segurança ou colocar um ponto final nos conflitos. Se parte do México usufrui dos importantes investimentos realizados pelo governo no desenvolvimento industrial e no comércio exterior, longas extensões do território ainda não se veem beneficiadas pelo crescimento que o país vem tendo. É nesse imenso espaço que atuam os cartéis. E onde um homem como o “Chapo” Guzmán significa oportunidade de um trabalho, de enriquecimento rápido, de poder comprar uma casa para a família e mais, como vendem os “narco-corridos”, de ter automóveis caros, armas, roupas de marca, bebida e mulheres.
A figura mítica de “Chapo” Guzmán não se construiu de um dia para o outro. O país já acompanha sua vida, que daria uma ótima telenovela, desde quando, ainda adolescente, ele se destacou por ter trabalhado junto a Miguel Angel Felix Guallardo, conhecido como “el Padrino” _tido como o pai do narco mexicano como existe hoje. Dali, o menino pobre que cresceu vendendo laranjas numa zona rural de Sinaloa foi para o cartel de Guadalajara. Destacado como um criminoso de mente empresarial, mais do que pela sua violência, “el Chapo” logo começou sua própria agrupação, que contou com representantes da família e gente de seu círculo local. Especialistas apontam para sua sagacidade de homem de negócios que teria previsto o momento seguinte do narcotráfico, que seria o de diversificar as drogas a serem vendidas e de valorizar as rotas em seu comando, mais até do que a natureza da própria mercadoria que passava por elas. Assim, passaram a ser vias usadas também para um contrabando generalizado de distintos produtos.
Ao cartel de Sinaloa atribui-se a morte de 34 mil pessoas. Mas ele, “el Chapo”, aparece associado a passagens mais anedóticas e menos sangrentas, sinal da esperteza de sua política de propaganda pessoal. Além de distribuir dinheiro e construir moradia para a população pobre de Sinaloa, é conhecido como alguém que dispensa luxos pessoais. As diversas casas-esconderijo que foram encontradas pelas autoridades trazem apenas colchões, cozinhas baratas e simples aparatos de televisão, além dos túneis unindo uma a outra e permitindo uma rápida saída das cidades, por baixo da terra.
Assim chamado por sua baixa estatura (“chapo” quer dizer “baixinho”), o narcotraficante é um notório comilão. Frequentava de cara lavada estabelecimentos cuja comida apreciava. Ao entrar neles, um de seus capangas alertava que quem estava no salão devia ficar quieto, entregar os celulares e não sair até que o “chefe” terminasse sua refeição. Ao final, ele mesmo cumprimentava cada um dos presentes e deixava uma gorjeta alentada aos garçons, além de pagar a refeição de todo mundo. Quando sua mulher ficou grávida, mandou-a para um caro hospital de Los Angeles. Como não há processos contra ela, a moça entrou e saiu dos EUA sem problemas e, apesar de seguida pelas autoridades norte-americanas, sumiu de sua vista devido a um complexo estratagema armado por ele desde seu esconderijo, no México.
A fortuna pessoal do “Chapo”, estimada em US$ 1,25 bilhão, rendeu-lhe uma posição entre os bilionários da revista “Forbes”, e também que pudesse comprar o silêncio de centenas de pessoas que o viram e que o ajudaram em suas fugas ao longo desses anos.
A nova escapada do “Chapo” coloca o governo de Enrique Peña Nieto em cheque novamente. Em 2001, quando o bandido escapou pela primeira vez, o PRI (Partido Revolucionário Institucional) criticou duramente o PAN (Partido da Aliança Nacional), que recentemente havia tirado a tradicional agrupação do poder que ocupara por 70 anos. O partido do atual presidente voltou a atacar o PAN em 2006, por este ter iniciado uma guerra contra os cartéis que resultou no aumento das taxas de mortalidade, sem resolver a questão do tráfico. Agora, o PRI prova do próprio remédio. Atual partido de situação, julgou ser possível resolver o problema evitando falar dele e esperando que as coisas entrassem numa improvável normalidade. Não foi possível. No ano passado, a desaparição de 43 estudantes em episódio em que estiveram envolvidas autoridades locais e integrantes de um cartel de Guerrero fez tremerem as bases do presidente. A população foi às ruas e até hoje não se calou de todo. O mesmo “Peña”, como o chamam os mexicanos, que há um ano dizia que seria “imperdoável” deixar o “Chapo” escapar novamente (vídeo acima), agora enfrenta a saia-justa de admitir que isso de fato aconteceu. Em 2014, apesar de insistentes pedidos dos norte-americanos, o presidente não quis extraditar o criminoso, porque dizia que mante-lo em solo nacional, apesar de ser mais caro, era uma questão de soberania.
Agora, a soberania virou vergonha, e deixou ainda mais evidente que seus esforços, de modo geral exitosos, para colocar o México no primeiro mundo não podem passar por cima da questão da violência.
Quanto ao “Chapo”, sua nova fuga coloca um desafio também aos veículos de comunicação, que ao noticiá-la quase não conseguem conter a exaltação romântica que veem no cinematográfico episódio, mas que assim certamente contribuem para alimentar a força dessas empresas de matar gente. Se desta vez servir para abrir, de fato, a discussão sobre a legalização das drogas, do lado de lá e de cá da fronteira, será ao menos uma boa notícia. Em visita a Paris neste domingo (12), Peña Nieto declarou apenas que considerava o episódio “lamentável”. Se for só isso que tiver a dizer sobre o caso ao desembarcar de volta ao México, muito provavelmente verá as praças se encherem de gente novamente.