“La jefa no se va”, será?
A cena acima pode parecer puro material corriqueiro de propaganda política. Animado, saltando e cantando, um grupo de jovens sinaliza: “Esses abutres não vão voltar, Cristina não se vai, não se vai, não se vai”. A presidente argentina, sorridente, estica o microfone para fazer ecoar a canção, que fala também em “seguir a lição de amor que Néstor Kirchner nos ensinou”. “É claro que eu não vou embora”, reafirma ela, “vou estar com vocês nas ruas”.
Aos olhos estrangeiros, a Argentina pode parecer muito mal das pernas, e sua presidente, no fundo do poço. Claro, a inflação realmente está alta (cerca de 30%), a pobreza cresceu (está por volta de 21%) e o caso da morte misteriosa do promotor Nisman grudou mesmo no governo _principal suspeito no julgamento popular. Ou seja, a imagem de Cristina Kirchner deveria estar queimadíssima, certo?
Errado. Nada mais errado. O que indicam pesquisas de opinião de institutos considerados independentes é que a presidente argentina tem nada menos do que 50% de aprovação neste momento, a quatro meses da eleição que escolherá seu sucessor. Isso não significa, apenas, que Cristina está com uma melhor imagem do que seus colegas Dilma Rousseff (Brasil), Michelle Bachelet (Chile), Juan Manuel Santos (Colômbia) e Enrique Peña Nieto (México). Mas também que encaminhará a Argentina para uma transição estável não muito comum no país vizinho.
Basta lembrar a passagem de bastão antecipada, em 1989, entre Alfonsín e Menem _o primeiro praticamente saindo pela porta dos fundos, tendo seu capital político demolido por conta da hiper-inflação. Depois, Menem fecharia o próprio mandato sob uma saraivada de críticas e ataques por conta de escândalos de diferentes naturezas, além de deixar a economia no caminho do descontrole. E o que dizer do melancólico Fernando De la Rúa, que simplesmente foi levado a deixar o governo de forma vergonhosa, de helicóptero, com a população nas ruas exigindo sua retirada? Mais atrás no século 20, pior, temos a vergonhosa sequência de golpes militares que traumatizaram para sempre a cultura política local.
Para os olhos de muitos argentinos, o kirchnerismo resultou em estabilidade, retomada do crescimento (pelo menos nos anos Néstor e na primeira gestão de Cristina), aumento da participação política com o estímulo à militância juvenil, explosão do consumo, criação de planos sociais (como a Assignação Universal por Filho) e adoção de uma posição de rebeldia antiimperialista que resultou convincente após a crise de 2001.
O que para os estrangeiros parece demagógico e até meio folclórico _os discursos pedindo a devolução das Malvinas, a nacionalização da petrolífera YPF ou das Aerolíneas Argentinas_ falou direto ao orgulho nacional argentino. É certo que há muitos que não caem nessa rede, mas estão longe de ser maioria.
Também é fato que a aprovação do governo Cristina foi abalada em várias ocasiões, desde que assumiu pela primeira vez, em 2007. As razões disso, porém, nunca foram pura e simplesmente econômicas. As piores quedas na sua aprovação foram causadas por tragédias com alto número de mortos. A presidente não possui habilidade para lidar com a dor dos outros e não se mostra solidária com as vítimas. Isso ficou evidente nos acidentes de trem de Flores (2011) e do Once (2012), e na inundação em La Plata (2013), só para ficar com os episódios mais sérios. Neles, Cristina jamais chamou a responsabilidade para si. Em vez disso, colocou outros funcionários de sua administração para responderem, forçando-os a se queimarem e a terem de deixar o governo. Ela mesma, em muitos casos, sumia de cena e refugiava-se na Patagônia. E, pior, quando tentava compensar, metia os pés pelas mãos. Em vez de mostrar-se sensibilizada com o sofrimento das vítimas, dizia que ela mesma era uma vítima, por ter ficado viúva. Blindou-se com o luto, o que para muitos soou como uma resposta antipática e equivocada.
Mas, para a sorte de todos, e principalmente para Cristina, faz um tempo que não ocorrem novas tragédias.
E o que isso tudo quer dizer com relação às eleições que vêm aí? Ainda é cedo para fazer previsões, mas uma coisa, que já era pressentida, agora é certa. Cristina não se vai. Sua palavra e suas escolhas devem definir a sucessão _como demonstrou o gesto que fez na semana retrasada, assumindo a candidatura Daniel Scioli como “oficialista” e colocando seu homem de mais confiança como candidato a vice. Mesmo que essa chapa perca, Cristina terá palavra nas decisões: o kirchnerismo segue com maioria no Congresso, a agrupação La Cámpora está metida em postos-chave de diversas estatais, órgãos e companhias estratégicos, e seu eficaz discurso populista tem muito a beneficiar-se se ela resolver posicionar-se para criticar as medidas de ajuste econômico pouco populares que seu sucessor será obrigado a adotar.
Muitas coisas ainda podem acontecer durante a campanha. Mas, por ora, o grito da canção do vídeo acima soa mais do que correto: “La jefa no se va”.