Hernán Cortés, de conquistador sanguinário a mestre da narrativa
Imaginem a confusão que haveria no Brasil se de repente surgisse alguém contestando a autoria de uma obra como “Os Sertões”, de Euclydes da Cunha, ou se na Argentina se descobrisse que o “Martín Fierro” não foi escrito por José Hernandez? Foi mais ou menos esse estupor que tomou conta do México há dois anos atrás, quando o historiador francês Christian Duverger, da Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales de Paris, lançou o livro “Cortes e Seu Duplo”, que agora sai no Brasil pela Unesp.
Após uma pesquisa de mais de dez anos, Duverger defende que a famosa crônica fundacional do México atual, a “História Verdadeira da Conquista da Nova Espanha”, diferentemente do que todos os mexicanos aprendem na escola, não foi escrita pelo cronista Bernal Díaz del Castillo (1492-1584). Para entender o quanto esse texto é importante, basta lembrar que Carlos Fuentes (1928-2012) o comparava a “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust. Narrando a história da conquista espanhola da América em tom aventuresco e tecido de forma rica e envolvente, o relato é conhecido hoje como um dos textos essenciais da língua hispânica.
E a tese de Duverger não morre aí, o francês ainda afirma que o mais provável autor da narrativa é nada menos que o conquistador Hernán Cortés (1485-1547), que a teria escrito nos últimos anos de sua vida como uma maneira de “construir sua estátua para a posteridade”.
Conversei com Duverger em minha última estada no México, e ouvi dele mesmo os principais argumentos que, caso confirmados, mudariam a história da literatura nesse idioma e resgatariam a figura de Cortés. Até aqui celebrizado como um conquistador sanguinário, ele poderia, agora, passar a ser visto como arguto observador e gênio das letras.
As dúvidas apontadas Duverger começam com relação ao próprio Bernal Díaz del Castillo. O francês apresenta, no livro, evidências de que este não sabia escrever. Algumas cartas dele que sobreviveram ao tempo são escritas cada uma com uma caligrafia diferente. “Ou seja, elas foram ditadas. Tudo leva a crer que era um homem de posse, mas de poucos recursos intelectuais”, afirma. O francês não nega que Del Castillo tenha existido, nem que tenha participado da conquista ao lado de Hernán Cortés, o caso é que, em nenhum local, há registro de que ele teria tido um acesso privilegiado à cúpula da Conquista. Teria sido, na verdade, um membro de menor importância da expedição. “Portanto, se é assim, como é possível que lembre de tantas coisas que não poderia ter presenciado? A crônica relata passo a passo cada episódio da viagem, cada decisão e estratégia escolhida, a chegada a Cuba, a tomada da capital asteca, Tenochtitlan, até o casamento de Cortés, na Espanha. É impossível que o verdadeiro Bernal tenha estado tão perto de Cortés e o tempo todo.”
O historiador, então, começou a cotejar o que sabia o autor do texto com todos os que estiveram mais perto do conquistador, e não encontrou ninguém que se encaixasse nesse perfil. “Só posso concluir que o autor é o próprio Cortés”, diz, de forma enfática.
Nos últimos anos, a imagem de conquistador sanguinário do espanhol vem sendo relativizada, seus escritos foram reinterpretados e começou-se até a elogiar sua ousadia e habilidades não apenas militares, mas também políticas. Obviamente, o legado de destruição causada ao subjugar os astecas, saquear seus pertences, dar início à matança generalizada de indígenas no território e transformar uma das principais civilizações do mundo de então em mera colônia espanhola ainda predominam. Mas, aos poucos, historiadores começam a tentar entender Cortés de forma mais enraizada no contexto que o criou, de certa forma humanizando-o.
Para Duverger, porém, ainda é muito difícil trazer ideias novas ao debate no país do norte. Seu livro, lançado primeiro na França, foi levado a discussão e teve grande repercussão na imprensa por lá. Já no México, historiadores tradicionais, a academia e os especialistas no período recusaram-se a levar o assunto a sério. “Pensei que isso levantasse uma discussão, mas muitos, entre aqueles que mais respeito, saíram falando mal do livro, acusando-o de mentiroso, sem sequer o terem lido”, conta Duverger.
Um dos principais conhecedores da época, Eduardo Matos Moctezuma, admitiu que a autoria do texto, as datas e que a própria identidade de Del Castillo podem sim ser questionadas, mas daí a aceitar a tese de Duverger seria outra história. “Como ele explica, então, as críticas a Cortés que há no livro?”, pergunta.
Também não fica clara a razão para o texto ter feito esse caminho. A tese de Duverger é que Cortés o teria escrito no fim da vida e desgostoso com a deterioração de sua imagem. Brigado com o rei, teria deixado o texto para que os filhos publicassem postumamente. Depois de sua morte, porém, os herdeiros de Cortés tentaram reconquistar as terras desbravadas pelo pai. O documento teria sido, então, roubado ou entregue a Del Castillo, um homem já em idade avançada, com mais de 80 anos. Após a morte deste, seu filho resolveu publicar o texto, dizendo que a autoria era do pai. Para Duverger, provavelmente de olho em alguma herança, alguma sobra do botim conquistador. “Talvez nunca saibamos a verdade, mas podemos eliminar aquilo que temos certeza de que é mentira e pelo menos questionar o que é duvidoso. Meu livro merecia mais atenção, mas é difícil ir contra verdades apoiadas em lendas”, resume Duverger.
No México, a polêmica segue em aberto. No Brasil, agora, é possível ter acesso às evidências e à versão de Duverger por meio da edição brasileira do livro, já no mercado.