A cartada mais ousada do kirchnerismo para continuar no poder
É cedo para fazer previsões sobre o resultado da eleição argentina, cujo primeiro turno ocorre no próximo dia 25 de outubro. Ainda mais porque, até agora, os mais prováveis presidenciáveis não conseguiram superar a marca de 20 e poucos por cento das preferências de voto.
Porém, aos que me perguntam se acho que está próximo o fim do kirchnerismo ou se Cristina Kirchner está mesmo acabada, tenho dito que é impossível fazer essa afirmação. Mesmo com a crise econômica, a inflação a quase 30% e a misteriosa morte do promotor Nisman a manchar sua imagem, a força e a base de apoio da atual presidente seguem sendo maiores do que as de qualquer outra força política. Seus quase 40% de aprovação popular, índice maior do que o de muitos colegas do continente, são apenas um indicativo disso. O fato de que nenhum candidato tenha ainda despontado com força, também.
É como se o país estivesse esperando que Cristina dissesse quem prefere como sucessor ou se o que quer mesmo é ir para a oposição, para desde ali apontar e recriminar o novo presidente, ganhando tempo e fôlego para se recompor e voltar com tudo na eleição seguinte.
O movimento que Cristina fez nesta semana, apresentando o atual secretário legal e técnico, Carlos Zaninni, como candidato a vice na chapa do governador Daniel Scioli, e tirando da competição o ministro do Interior e Transporte, Florencio Randazzo, marca uma investida ousada e agressiva no sentido de manter a linha mais dura do kirchnerismo no poder.
Conhecido como “monje negro”, o calado e discretíssimo Zaninni é uma figura perene e irremovível do atual governo. Esteve na chamada “mesa chica” (mesa pequena) da gestão Néstor Kirchner (2003-07), a quem acompanha desde o nascedouro político, em Santa Cruz, e nas duas gestões de Cristina. A expressão “mesa chica” simboliza bem o funcionamento de um governo que quase nunca realiza reuniões ministeriais ou qualquer outro debate de cúpula. Na “mesa chica”, manda Zaninni, dois outros altos funcionários acrescentam uma ou duas observações, e Cristina sai dali com as decisões tomadas.
Militante maoísta na juventude, Zaninni é o articulador das medidas mais polêmicas e exitosas da presidente. Foi quem bolou a estatização do futebol e da YPF, articulou a Lei de Meios _popularizando a chamada “batalha cultural”, alcunha do enfrentamento do governo com os jornais de oposição (qualquer semelhança com a “revolução cultural” chinesa não é mera coincidência).
Faz, ainda, o elo de ligação entre o grupo de empresários mais queridos do kirchnerismo e a presidente, arma as listas de candidatos das províncias, decidindo quem concorre a que posto, e ainda comanda o La Cámpora. Se Máximo Kirchner é o líder formal da agrupação, agitando suas movimentações para o grande público, Zaninni é o responsável por ter feito com que seus líderes fossem parar nos mais altos cargos de estatais e instituições do governo.
A lista é longa. A pergunta seria, por que mete-lo como vice de Scioli, a essa altura?
Pois bem, Scioli representa um problema e uma solução para o kirchnerismo hoje em dia. Figura mais associada a um peronismo mais clássico, o governador de Buenos Aires poderia virar um problema para Cristina. Não pode ser considerado um kirchnerista, mas também não chega a ser um dissidente. Sem outros possíveis sucessores com força, Cristina já havia admitido entregar a ele seu apoio, um pouco contrariada. Porém, Scioli tem vida, e eleitorado, próprios, e um discurso diferente do de Cristina para alguns assuntos. O caso do enfrentamento com os meios, por exemplo, é um deles. Ele já havia sinalizado que abrandaria o discurso e as ações de avanço contra a liberdade de imprensa, jogava com a promessa de diminuir a polarização e a divisão entre kirchneristas e não-kirchneristas que se instalou na sociedade. Também claro estava que fecharia a porta e não deixaria Cristina opinar livremente em sua gestão.
A chegada de Zaninni muda completamente a candidatura Scioli. Representa um endurecimento do discurso, a falta de transparência e a proximidade dos empresários amigos do kirchnerismo. É, claramente, uma forma de conter o estilo mais conciliador e voltado ao diálogo de Scioli e de manter o grupo de Cristina com uma mão, pelo menos, no bastão presidencial.
Scioli, porém, não teria sobrevivido politicamente dentro deste governo se não fosse extremamente habilidoso. Desde que foi vice de Néstor, nunca esteve de fato alinhado ao kirchnerismo, mas tampouco lhe fechou as portas. É um dos políticos mais populares do país e governa a província de Buenos Aires, onde estão 40% dos eleitores argentinos.
Pode-se dizer que a manobra já mudou a corrida eleitoral argentina. A chapa governista Scioli-Zaninni já se transformou, pelo menos, no centro das atenções e das tensões numa campanha que até aqui andava arrastada e sem emoções. Com o candidato dissidente Sergio Massa em baixa e o anti-kirchnerista Mauricio Macri atordoado e sem saber como fazer para crescer nas pesquisas, o kirchnerismo finalmente se posiciona e lança-se à frente na corrida eleitoral. A oposição, se quiser competir de fato, terá também de fazer uma manobra de risco, e logo.