Festa no estádio Nacional do Chile?
Há dois anos, um ministro argentino resolveu fazer um churrasco de confraternização de fim de ano, e escolheu nada menos que a Esma (Escola de Mecânica da Marinha) para isso. Para quem não sabe, este foi um dos principais campos de concentração da última ditadura argentina (1976-83). A pergunta polêmica, que não era nova, voltou a se instalar: o que fazer com um local que foi usado para torturas, partos de bebês que seriam roubados, assassinatos e triagem de quem iria ser atirado nas águas do Rio da Prata?
Na Argentina, essa discussão nunca parou, e a Esma hoje funciona como centro de memória, com exposições e debates sobre a época. Familiares de vítimas se dividem, uns gostam que o uso seja este e que o local siga vivo, outros prefeririam que ali não houvesse absolutamente nada, apenas um marco silencioso para lembrar o sofrimento das vítimas. Poucos concordam, porém, que seja apropriado usar o local para situações mais festivas. O tal churrasco promovido pelo ministro, com carnes assadas na grelha, foi amplamente repudiado na ocasião.
Lembrei do episódio ao ver o Estádio Nacional, em Santiago, todo iluminado e enfeitado para a festa de inauguração da Copa América. Durante os primeiros dois meses após o golpe militar no Chile (1973), o local foi usado como centro de detenção para mais de 20 mil pessoas. Ali, houve tortura e assassinatos de suspeitos de apoiarem o governo socialista de Salvador Allende, que morreu naquele 11 de setembro, após o ataque ao Palácio de La Moneda.
O melhor retrato do que ocorreu no estádio que abrigará também a final desta competição está no excelente filme “Desaparecido” (1982), do diretor grego Costa-Gavras, baseado em caso real. Na produção, o ator norte-americano Jack Lemmon encarna o pai do jornalista Charles Horman, que ao lado da esposa deste, Beth, vivida por Sissy Spacek, busca o “desaparecido” do título.
O filme, com belíssima trilha musical de Vangelis, mostra como o conservador e católico Ed Horman a princípio acredita nas autoridades diplomáticas norte-americanas e critica o filho, que deveria “ter aprontado algo com todo seu idealismo”. Aos poucos, porém, se convence de que os EUA havia atuado covardemente, como cúmplice dos militares chilenos, e o vinha enganando sobre o paradeiro do filho. A cena em que Horman fala, em vão, aos detidos nas arquibancadas do estádio, buscando Charlie, são de arrepiar ainda hoje. Em determinado momento, ele crê que um rapaz de cabelo cacheado comprido, que vem correndo em sua direção, é o filho perdido. Mas não, trata-se de um prisioneiro chileno, que vem reclamar o fato de que seus pais não podem vir reclamar por ele, e que ele tinha privilégios sendo estrangeiro. Na verdade, nem isso adiantou, Charlie jamais reapareceria.
Nos corredores, rampas de acesso e vestiários do Estádio Nacional, Ed e Beth encontram corpos ensanguentados e prisioneiros de olhar esbugalhado, esperando a hora da morte.
Cada país do Cone Sul que passou por uma ditadura lida hoje de um jeito diferente com a memória. Se a Argentina derrubou anistias e indultos e julgou a maioria dos comandantes e agentes da repressão, no Chile ainda há certa ambiguidade sobre o legado dos militares que ocuparam o poder entre 1973 e 1990. Parte da sociedade ainda crê que as cerca de 3 mil mortes de opositores, segundo estimativas, foram um “efeito colateral” de um momento político e econômico em que havia sido positivo ter alguém como Augusto Pinochet (1915-2006) à frente do governo. Por sorte, pelo menos entre os jovens, hoje a maioria parece discordar disso.
Na capital do país, Santiago, construiu-se, durante a primeira gestão de Michelle Bachelet (2006-10), um belo museu pela memória dos desaparecidos e, em 2013, nos 40 anos do golpe, houve avanços nas discussões sobre a pertinência de esclarecer a verdade sobre as vítimas e questionar a anistia. Alguns julgamentos, por fim, começaram. Entre os mais famosos, o do poeta Victor Jara (1932-1973), um dos principais compositores chilenos daquele tempo. Exumou-se, também, o cadáver do poeta Pablo Neruda, morto pouco depois do golpe, ainda sem uma investigação conclusiva. No austero Museo de la Memória impera a ideia de respeito e convivência, desde a arquitetura da fachada externa a suas salas e áreas livres. Não se trata de um museu engajado, e sim que convida a refletir sobre a época.
Não acho que o Chile não possa sediar a Copa América, e nem que Santiago não deva fazer festa, muito longe disso. Muitas partidas decisivas da seleção local, e outras, de Libertadores da América, já foram jogadas lá. Mas me parece perturbador que o Estádio Nacional esteja em uso exatamente com a mesma estrutura que tinha na época em que recebeu mais de 20 mil prisioneiros e viu o sangue de muitos deles ser derramado por suas arquibancadas e paredes.
Que seus vestiários sejam hoje usados por jogadores depois de terem servido de salas de tortura, interrogatório ou depósito de cadáveres. Que suas arquibancadas recebam crianças e famílias alegres e de bandeira em punho, quando ali tantos esperaram dias e noites em vão por uma liberdade que nunca veio.
Penso que o melhor teria sido que se derrubasse este estádio e se construísse outro, até mesmo com o mesmo nome, mas em outro bairro, longe dali. O espaço poderia ter sido transformado em um parque ou num espaço para a reflexão. Poderia ficar em pé, mas não para receber eventos festivos, e sim como um museu para lembrar aquela época. Não só por respeito às vítimas, mas porque uma sociedade que ignora e pisa sobre seu passado dificilmente pode evitar que uma nova situação de abusos e violência se repita.