“#Renunciaya”, a vez da Guatemala
Em “El Señor Presidente” (1946), mais famoso livro do prêmio Nobel guatemalteco Miguel Angel Asturias (1899–1974), o líder máximo do país é uma figura sem nome. Apesar de sabermos que, de fato, o escritor se inspirava diretamente na imagem de Manuel Estrada Cabrera _advogado que governou a Guatemala com mão-de-ferro entre 1898 e 1920_ a abordagem de Asturias explora o aspecto mitológico do cargo e tenta entender a particularidade dos presidentes latino-americanos, tanto ao conquistar o apoio popular como ao manipular emoções. A obra, que se insere na tradição literária das “novelas de ditadores” do continente, ao lado das do paraguaio Roa Bastos ou do colombiano García Márquez, também ajuda a iluminar o presente.
Em seu retrato da capital do país, por exemplo, Asturias a descreve como um lugar calmo, em que o tempo parece parado, namorados se encontram ao pé das janelas e meninos correm pelas suas vielas coloniais. Subitamente, porém, tudo muda (“Algunas noches, sin embargo, cambiaba todo”). Era o momento em que a violenta história do país, com raíze no império maia e um passado de guerra civil, vinha à tona e explodia nas ruas.
Impossível não lembrar dessa passagem ao ver as imagens do último fim de semana na plaza Constitución, na Cidade da Guatemala, quase setenta anos depois. Milhares de pessoas tomaram as ruas para reclamar da corrupção do governo e pedir a renúncia do atual presidente, Otto Pérez Molina, que está longe de ser um sujeito tão autoritário como o que pintava o romance, mas cujo governo carrega traços da política daquele tempo. Por detrás das bandeiras mais imediatistas, surgem reivindicações mais históricas, que se tornam latentes agora. País de 15 milhões de habitantes e essencialmente mestiço (apenas 18% de brancos), a Guatemala é uma democracia ainda baseada em seu passado colonial e bastante injusta, com a maioria de sua economia baseada na informalidade (quase 70%), e instituições não de todo estabelecidas.
O principal escândalo que afeta o poder agora é a revelação da investigação de um grande esquema de troca de favores entre políticos e empresários, que começou no final de abril. O chamado “La Línea” proporcionava aos políticos financiamento de campanha e propinas, enquanto empresários obtinham favores como pagar menos impostos e tendo preferência em licitações. O caso já causou a renúncia da vice-presidente do país, Roxana Baldetti, mas os manifestantes não se contentam apenas com esse gesto.
“#Renunciaya” (renuncie agora) é o grito de guerra do movimento, que é convocado pelas redes sociais, e compõe-se majoritariamente da população universitária. Diferentemente de outros países da região que também tiveram seus protestos de “indignados” (México, Brasil e Chile), na Guatemala há apoio também de boa parte da imprensa e de instituições de diferentes características. Pérez Molina foi levado a gravar uma declaração, na semana passada, de que sair do cargo agora estaria fora de questão. Enquanto isso, os cartazes que vão às ruas pedem mais recursos para educação e saúde, e a devolução aos cofres públicos do dinheiro gasto no esquema. Os EUA observam o movimento com atenção, uma vez que a instável situação da Guatemala, de El Salvador e de Honduras reflete-se imediatamente em ondas de imigração ilegal para dentro de suas fronteiras.
Assim como descreveu o espanhol Manuel Castells em entrevista que publiquei há três semanas, movimentos como o “#Renunciaya” são particulares em sua origem e expressão, mas têm em comum o fato de não apresentarem uma alternativa objetiva ou uma nova liderança. O caso da Guatemala vai na mesma linha dos outros da região, pois ainda não se concretizou em apoio a alguma candidatura e nem se unificou sob uma mesma bandeira.
Pelo visto, porém, a novela aí está só começando. Mas o blog encerra aqui com uma recomendação de leitura. “El Señor Presidente”, do guatemalteco prêmio Nobel Miguel Angel Asturias, para entender a América Latina de ontem e a de hoje.