Livro disseca laboratório de ditadura argentina

Sylvia Colombo
Capa do livro "Viva la Sangre!", de Ceferino Reato
Capa do livro “Viva la Sangre!”, de Ceferino Reato

“Os anos 70 são a Segunda Guerra Mundial do mercado editorial argentino.” Em linhas gerais, assim define, em entrevista à Folha, o jornalista Ceferino Reato, 54, um dos períodos mais violentos da história de seu país.

De fato, praticamente a cada mês novos títulos sobre o período desaguam nas livrarias de Buenos Aires. Como sempre, porém, a história é escrita a partir das questões do presente. E isso fez com que, nos últimos tempos, fosse bastante mais comum que se escrevesse sobre a repressão da ditadura militar (1976-1983), uma vez que o atual governo centrou sua política de direitos humanos exclusivamente nos julgamentos dos responsáveis por crimes daquela época.

O trabalho de Reato, porém, enfoca um recorte de tempo diferente, mais amplo, mostrando que a violência política já era um fato consumado bem antes do golpe que derrubou Isabelita Perón. Em trabalhos anteriores, Reato abordou a violência montonera (“Operación Traviata”, sobre o assassinato do líder sindicalista José Ignacio Rucci, e “Operación Primicia”, sobre um ataque guerrilheiro a um quartel onde só havia recrutas, em Formosa). Ambos contribuem enormemente para a compreensão do contexto que permitiu que a ditadura se instalasse, com anuência de influentes setores da sociedade civil.

Terminei recentemente de ler seu último livro, “Viva la Sangre!” (ed. Sudamericana), que aborda a violência pré-golpe na cidade de Córdoba, a segunda mais importante do país, tanto da parte da guerrilha armada como da repressão. “O sangue que correu ali foi um ensaio do que ocorreria logo depois, em escala nacional”, conta o jornalista.

Em Córdoba, em 1975, Reato explica, chegou-se muito perto de uma verdadeira revolução socialista. “Houve uma aliança muito forte entre estudantes, trabalhadores e membros das guerrilhas urbanas Montoneros e ERP (Ejército Revolucionário del Pueblo). Perón já havia percebido isso, e tomou providências, mas a violência mais sangrenta ocorreria depois de sua morte, em 1973.”

Entre os meses de agosto e outubro de 1975, o Comando Libertadores de América _grupo paramilitar vinculado ao Exército _ lançou sua pesada mão sobre Córdoba. No semestre anterior à derrubada do governo de Isabelita, 69 pessoas desapareceram na região. Os números da repressão militar na província apenas confirmariam a tensão política e armada local. Ali, durante a ditadura, desapareceriam outras 438, enquanto 118 foram fuzilados.

“Não creio que seja possível entender porque não conseguimos conviver em paz hoje na Argentina enquanto não conseguirmos entender e refletir sobre o que aconteceu nos anos 1970. Ali está parte da explicação de tanta divisão política e tensão na sociedade”, diz Reato, que mantém uma posição crítica a ambos mandatos kirchneristas. “Neste livro, tento entender como matar e morrer se transformou então numa coisa banal.”

Os livros de Reato costumam causar reações inflamadas de defensores dos direitos humanos, em parte por oferecerem uma visão não edulcorada daqueles que faziam oposição à ditadura.

“Vivi a ditadura e sou consciente do que aquilo trouxe de negativo e dos crimes contra a humanidade que se cometeram aí. Mas não se pode entender a história sem observar um panorama mais completo e todos os seus personagens.”

Acreditando nisso, Reato entrevistou, em 2012, o general Jorge Rafael Videla, comandante da primeira junta ditatorial. Apesar de ter obtido informações novas sobre a época, Reato foi criticado simplesmente por realizar a entrevista e publica-la no livro “Disposición Final”. Seus críticos diziam que dar espaço a Videla era de certa forma resgata-lo, justifica-lo. O fato é que Videla morreria meses depois e, se não fosse pela entrevista que Reato fez com o general, na penitenciária militar em que cumpria pena, jamais se saberia dos bastidores do início da repressão. Na entrevista, ainda, Videla admitiu que o roubo de bebês dos guerrilheiros mortos aconteceram de forma praticamente generalizada.

Atualmente, Reato também protagoniza outra discussão-tabu, a que ocorre em torno do número de desaparecidos pela ação repressiva do Estado entre 1976 e 1983. A estimativa de grupos de direitos humanos, corroborada pelo atual governo, é de 30 mil pessoas.

Recentemente, porém, estudos e novas interpretações apontam para uma cifra menor, de algo mais de 20 mil pessoas _igualmente monstruosa, porém menor.

“A contagem que se fez em 1983 pela Conadep registrou ao redor de 9 mil, com o tempo e novas descobertas, esse número cresceu, mas não chega a 30 mil. Esse número foi inflado pelos que se exilaram na Europa no período”, explica.