Resgate de Roberto Arlt mostra a outra cara de Buenos Aires
Bairros como Caballito, Flores e Vélez Sarsfield não estão entre os mais identificados pelo público internacional como sendo essenciais para Buenos Aires e a cultura portenha. Sem o charme e o nariz empinado da Recoleta ou o peso histórico de San Telmo, são zonas que concentraram, desde o fim do século 19, grupos de imigrantes de classe média pobre e baixa. Um retrato de como eles eram está em “A Vida Porca” (1926), um dos principais livros do argentino Roberto Arlt (1900-42), que agora ganha nova tradução e edição em português, pela editora Relicário.
Ali, conta ele: “Também me agradava, nas manhãs de primavera, bater perna pelas ruas percorridas por bondes, vestidas com toldos de comércio. Comprazia-me o espetáculo dos grandes armazéns interiormente assombrosos, as queijarias frescas como granjas com enormes pilhas de manteiga nas prateleiras, as tendas com vidraças multicoloridas e senhoras sentadas junto aos mostradores diante de leves rolos de tecidos; e o cheiro de tinta nos depósitos de construção e o aroma de petróleo nas dispensas se confundiam nas minhas sensações como a fragrância de uma extraordinária alegria, de uma festa universal e perfumada, cujo futuro relator seria eu.”
Reconhecido hoje como um dos grandes autores argentinos do século 20, Arlt ainda encontra muitos obstáculos para ser mais divulgado, principalmente em países de idioma não-hispânico. Muitos fatores explicam essa situação. O primeiro é o de ter sido opacado pela fama internacional dos geniais Jorge Luis Borges (1899-1986) e Julio Cortázar (1914-84). Outra, por escrever em um castelhano muito particular, anclado ao lunfardo, dialeto dos habitantes dos bairros pobres de Buenos Aires. O que, só por isso, dificulta muito a tradução a outras línguas. Ainda, por ter tido dificuldades para se inserir socialmente, sendo filho de imigrantes (pai prussiano, mãe italiana). Isso lhe conferiu um estilo de escritura quase raivoso, parecendo obedecer uma poética intuição.
Sua vida fugaz também não lhe deu muito espaço para estabelecer-se. Vítima de um ataque cardíaco, Arlt morreu ainda relativamente jovem, aos 42 anos.
De uns tempos para cá, editoras argentinas têm resgatado boa parte de sua obra que havia estado dispersa _Arlt escreveu muito para jornais e revistas. Fazia relatos sobre crimes, observações da vida e dos costumes da cidade, com extraordinária atenção aos detalhes de cada cena. Para o “El Mundo”, fez crônicas quase que diárias dos locais nos quais esteve, entre eles Espanha, Norte da África e Brasil. Seus principais romances saíram quando ainda era muito jovem, como se o próprio soubesse que não iria ter muito tempo neste mundo. Além de “A Vida Porca”, lançado quando tinha 26 anos, Arlt também se celebrizaria por “Los Siete Locos” (1929) e “Los Lanzallamas” (1931).
Conversei com o tradutor da recente edição para o português, Davidson de Oliveira Diniz, que é doutor em teoria da literatura e professor de literaturas hispano-americanas na Universidade Federal do Rio de Janeiro. O presente volume traz um ensaio de Diniz sobre a relação da obra de Arlt com a tradição literária argentina do século 19. O papo acabou extrapolando o tema Arlt e comentando as limitações brasileiras para o conhecimento da cultura do país-vizinho e aspectos mais específicos da tradução. Deixo aqui os principais trechos das considerações do professor Diniz. Que seja um convite para conhecer melhor a obra desse incrível escritor.
Folha – Como surgiu o projeto da edição e por que escolher o título “original” do livro e não o que acabou ficando celebrizado em espanhol, “El Juguete Rabioso”?
Davidson Diniz – O projeto surgiu de uma consultoria que me foi feita pela Maíra Nassif, editora da Relicário Edições. Ela tomou conhecimento de um edital do “Programa Sur de Subsidios a las Traduciones”, da embaixada da Argentina, que visa a tradução e publicação de escritores daquele país em outros idiomas. O edital de 2013-2014, a que concorremos, privilegiava as traduções do escritor Julio Cortázar (1914-84), em função do seu centenário. A Maíra então me pediu uma relação de possíveis títulos do autor sem tradução no Brasil. Como praticamente toda a sua obra encontra-se traduzida ao português e publicada por aqui, sugeri outros escritores argentinos. Acabamos optando por Arlt.
A escolha do título original, “La Vida Puerca”, conforme aparece nos adiantamentos de capítulos inicialmente publicados na revista “Proa”, dá-se pela seguinte razão: resgatar um sintagma definidor do projeto literário do autor, ou seja, uma estética suja, transgressora, algo emporcalhada, melancólica às vezes e delinquente sempre, tendências que perpassam todo o plano de composição verbal e filosófico do romance em questão. A alteração para “El Juguete Rabioso”, título com o qual saiu na Argentina, em 1926, havia sido uma sugestão do escritor e editor da revista “Proa”, Ricardo Güiraldes (1886-1927), espécie de padrinho literário do Arlt antes da profissionalização. “La Vida Puerca”, para Güiraldes, era um título “cético demais”. Güiraldes é um escritor com raízes literárias no século 19. Sua grande narrativa, “Don Segundo Sombra” (1926), é um romance que flerta deliberadamente com o “gauchesco”, gênero literário que havia tido auge no século 19 na região do Rio da Prata. Por conta de seu vínculo direto com a geração em torno das revistas “Martín Fierro” e “Proa”, veículos cruciais para a consolidação da vanguarda portenha, ele é muitas vezes confundido com um vanguardista.
Mas, na verdade, Güiraldes não é senão um escritor com raízes literárias no século anterior, que apenas acaba recebendo bem a geração vanguardista da década de 1920. Ao argumentar a sugestão de mudança de “La Vida Puerca” para “El Juguete Rabioso”, por exemplo, o modelo literário que Güiraldes tem em mente é Calderón de la Barca (1600-81), autor do “século de ouro” espanhol e cume do barroco ibérico!
Ou seja, Güiraldes não percebe a força vanguardista do título original de Arlt, capaz de problematizar a (não) assimilação da cultura popular no projeto linguístico e de nacionalidade argentinos àquele momento.
A versão que sai agora pela Relicário Edições, com o título de “A Vida Porca” (2014), é a segunda edição do texto no Brasil. Antes, Maria Paula G. Ribeiro havia feito uma tradução publicada pela editora Iluminuras, mantendo-se aí o título de Güiraldes, “O Brinquedo Raivoso”.
Nossa proposta, portanto, cuidou de resgatar o título arqueológico do projeto literário de Arlt. Pretendemos, com isso, oferecer ao público brasileiro o conhecimento do processo descrito acima, bem como uma nova tradução para um dos pilares verbais do sistema literário argentino. Além do mais, cuidamos carinhosamente do projeto gráfico, assinado pela Ana C. Bahia.
O livro mimetiza um bandoneón, instrumento muito representativo da oralidade e da cultura popular argentina de que Arlt falava em seus livros. Os leitores encontrarão na nossa edição não só uma narrativa que usa o papel e a impressão como meio, mas, também, uma narrativa em dimensão de objeto gráfico, dado que o bandonéon tem características similares ao livro e à máquina de escrever: o fole do instrumento é feito de papel e, quando aberto, sugere a imagem de um livro sendo folheado; já as teclas do bandoneón, bem como o procedimento que implica a sua digitação, guardam consigo muito das antigas máquinas de escrever.
Folha – O ano passado, como é apontado no prólogo, foi pródigo para as traduções do Arlt no Brasil. Por que crê que, por tanto tempo, foi um nome deixado em segundo plano por editoras brasileiras? E por que a redescoberta agora?
Diniz – O fato de o ano de 2014 ter sido pródigo para as traduções de Arlt no Brasil está diretamente relacionado à passagem da obra arltiana ao âmbito do “domínio público”, espécie de Prometeu que, na era da não-reprodutibilidade do deus Copyright, rouba a chama criadora para compartilhá-la.
Contribui também para isso o fato de terem sido finalmente publicadas as “Águas-fortes Cariocas” (Rocco), série de textos que seguiam desconhecidos na própria Argentina até pouco tempo atrás.
Esse Arlt que fala sobre o Rio de Janeiro, que teoriza sobre a cultura brasileira falando pelos cotovelos, como lhe é comum ao gênio, emendando com análises culturais e um comparatismo estapafúrdio, mas que deixa reverberar verdades que gostaríamos de calar, então passa a despertar mais interesse entre nós, dado que desde a primeira visita dos portugueses nos tornamos narcisistas e, sim, gostamos muito de espelhos para encontrar o outro de nós.
Isso, porém, não explica de todo a demora em publicarmos suas obras por aqui.
É preciso entender o processo por meio do qual a sua obra é ressignificada na própria Argentina. É só a partir daí que poderemos assimilar a tardia “invasão de Arlt” no Brasil. Vamos aos pontos.
Ao longo do final das décadas de 1920 e parte de 1930 a produção de Arlt tem um público considerável apesar de a vanguarda argentina ser moderada no que diz respeito à assimilação do repertório popular e multiplicidades discursivas. É grande e exitosa a recepção de sua coluna “Água-fortes Portenhas”, espécies de crônicas que saem diariamente pelo jornal “El Mundo” entre os anos 1928 e 1933 (depois começará o período das “água-fortes” cariocas, espanholas, marroquinas, etc.). E seus romances também vendem bem; alguns deles recebem os prêmios mais importantes oferecidos à época em Buenos Aires. Ao final de sua carreira, ele passa a escrever para o teatro, pois acredita ser um gênero mais rentável.
Essa estratégia, porém, não é muito bem sucedida do ponto de vista da profissionalização do escritor. Sua obra então sente um primeiro momento de ostracismo. E, após a sua morte, em 1942, isso se sentirá com maior gravidade.
Some-se a isso a hegemonia do projeto cultural e literário que o grupo “Sur” (revista literária e, posteriormente, editora) passará a exercer na Argentina a partir dos anos 1930 e, fundamentalmente, 1940. Trata-se de um projeto de modernização cultural, literária e editorial altamente elitista, ocupado basicamente em difundir tendências da literatura francesa ou inglesa na Argentina como parâmetros para a literatura nacional. A obra de Arlt não é exatamente o que poderia ser endossado ao longo desse período em que “Sur” se consolida cada vez mais como o veículo que legitima a literatura na Argentina.
É só a partir de meados da década de 1950, com a emergência de uma crítica literária profissionalizada, que a obra de Arlt entrará em processo de resgate. Contribuíram para isso os irmãos David e Ismael Viñas, ambos à frente da revista “Contorno”, publicação irradiadora do revisionismo da crítica literária argentina e que, àquela época, oferecerá uma alternativa ao projeto cultural e literário implantado pelo grupo Sur.
A obra de Arlt, então, passa à condição de reserva verbal e cultural para a superação do modelo oficial instituído por Ocampo.
Já na década de 1970 o grupo da revista “Punto de Vista”, fundamentalmente idealizada por Beatriz Sarlo, Carlos Altamirano, Elías Semán e Ricardo Piglia, dá continuidade ao revisionismo da década de 1950. E é a partir daí que Roberto Arlt, muito em função da obra ficcional e ensaística do escritor Ricardo Piglia, recobrará seu lugar no sistema literário argentino.
Piglia é um incansável difusor da obra de Arlt na Argentina. Para este ano, por exemplo, preparou uma adaptação do romance “Os Sete Loucos”, que muito em breve esteará pela TV Pública argentina. É possível afirmar que a sobrevida literária de Arlt estaria comprometida não fosse a insistência de Piglia e a reverberação da sua obra na Argentina e, também, entre os leitores das faculdades de Letras no Brasil ao longo das duas últimas décadas.
Tudo isso nos explica, portanto, o porquê de a obra do autor ter sido negligenciada entre nós.
A primeira razão está relacionada ao próprio trajeto de ressignificação literária da obra de Arlt no país vizinho. O sistema literário argentino oscila ao decidir sobre o valor literário de Arlt para a literatura nacional. Depois, a recepção de um escritor em traduções é algo que nem sempre vem a bom tempo. É preciso esperar por projetos editoriais de tradução. E depois pela recepção, obviamente. Os editores sempre mantêm o pé atrás com relação à rentabilidade. Além do mais, a literatura argentina está reduzida, para nós brasileiros, a Borges ou ao Cortázar e, no mais feliz dos casos, a Adolfo Bioy Casares (1914-99).
É preciso lutar contra a enorme sombra que projeta a imagem desses três enormes escritores. E, ao rasgá-la, enxergar ali, na declinação de suas silhuetas já canonizadas, outras figuras, tais como Macedonio Fernández (1874-1952) ou Roberto Arlt, ou, para não esquecermos de algo mais atual, tais como Libertella ou C. E. Feiling, excelentes escritores esses dois últimos citados e que ainda seguem sem nenhuma tradução entre nós, brasileiros.
As grandes editoras (que via de regra podem pagar pelos direitos autorais) sempre são temerárias, pois reificam a literatura, só a pensam do ponto de vista mercadológico. Cabe às editoras independentes, que ainda ousam publicar esperando mais prestígio que lucro, a revelação do que ficou sedimentado nas dobras do tempo editorial.
São elas que toparão salvar os grandes livros que nós ainda não conseguimos ler e deveríamos.
Folha – Quais os desafios de traduzir e editar uma narrativa cheia de impurezas e desvios e transgressões de um autor como ele?
Diniz – Inúmeros. Tive de pesquisar muito o campo lexical do lunfardo, espessura verbal do idioma não oficial argentino a que desce várias vezes o linguajar de Arlt. É uma textualidade difícil, às vezes impenetrável, e isso para os próprios argentinos.
Folha – É mencionado no prólogo uma certa produção acadêmica dedicada ao autor, pode explicar um pouco quais as preocupações e aportes que os estudiosos brasileiros fizeram à sua produção?
Diniz – Os estudos acadêmicos sobre a obra do Arlt (artigos, dissertações e teses) giram em torno de tópicos em sua fortuna crítica, tais como: literatura e delito, literatura e linguagem popular, literatura e vanguardas, literatura e jornalismo, literatura e espaço urbano, etc. Há, no Brasil, algum comparatismo entre Arlt e João do Rio, uma vez que ambos escreveram sobre o espaço urbano (Buenos Aires e Rio de Janeiro) através das crônicas publicadas em jornais. Há muita gente que o retoma também ao discutir Borges, dado serem de uma mesma geração e representarem antípodas estéticas.