Há 23 anos, Fujimori deu “autogolpe” e tornou-se ditador do Peru
Há 23 anos, os peruanos foram surpreendidos por uma inusitada transmissão em cadeia nacional. Na noite daquele 5 de abril de 1992, o então presidente Alberto Fujimori calmamente fez um rápido diagnóstico do país. Afirmou que os partidos de oposição e a Justiça estavam colocando obstáculos demais à sua frente, impedindo-o de “reorganizar” as coisas como acreditava que era necessário. Parou, tomou um gole d´água e seguiu, serenamente. Explicou que a única saída que via para salvar o Peru da ameaça da expansão do poder dos grupos guerrilheiros, especialmente do Sendero Luminoso, era dissolver o Congresso nacional e intervir no poder Judicial (vídeo abaixo). E assim o fez. O chamado “autogolpe” teve, num primeiro momento, amplo apoio da sociedade _mais de 82% da população. Eleito dois anos antes de forma surpreendente, Fujimori havia surgido na disputa como um “outsider”. Entretanto, com o lema “um presidente como você”, conseguiu transmitir a ideia de que, como filho de imigrantes japoneses, experimentava a mesma dificuldade de inserção social que a população indígena. O tímido engenheiro agrônomo que falava em tom moderado ganhou rapidamente grande apoio popular e, em seus comícios, o grito de guerra era: “chino presidente”. Nas urnas, Fujimori venceu o hoje prêmio Nobel de Literatura, Mario Vargas Llosa.
Naquele 5 de abril, o Congresso foi, então, cercado por tanques, para o espanto dos parlamentares. Alguns tentaram entrar a qualquer custo, gritando “somos uma democracia”, mas, assim como os jornalistas presentes, foram impedidos. Jornais passaram a sair com várias páginas em branco, devido à censura. Sedes de partidos políticos e de organizações de direitos humanos foram tomadas. O golpe deu início a uma política de linha duríssima com relação às guerrilhas (Sendero Luminoso e MRTA). Leis anti-terrorismo entraram em vigor imediatamente, e esquadrões da morte atuavam à luz do dia.
No interior, o Exército aliciava civis organizados em “guardias rurales” para enfrentar o Sendero. O saldo final da sangrenta guerra foi de mais de 70 mil peruanos, entre guerrilheiros, militares e civis. O ponto alto foi a prisão do líder senderista Abimail Guzmán, em 1992. Fujimori apresentou-o como se fosse um trófeu, vestido com um uniforme de listras negras e dentro de uma jaula. “Eu sabia que esse uniforme de preso não existia no Peru, mas imaginei que as pessoas associariam com a imagem que têm dos filmes”, disse, sorrindo, anos depois, a um documentário da HBO (“The Fall of Fujimori”, pode ser visto no youtube).
O ato de Fujimori revoltou muitos e pôs o Peru no foco da mídia internacional. Porém, até hoje, muitos peruanos ainda apóiam aquela decisão.
“O golpe foi necessário, a situação era muito difícil de enfrentar de outra maneira”, disse, na última semana, ao “El Comercio”, a congressista Martha Chávez. Já o especialista na história da guerrilha, Gustavo Gorriti, autor de “Sendero: História da Guerra Milenaria no Peru”, afirma que não há como desculpar a atitude de Fujimori. “Não era justificável dar um golpe por nenhum dos motivos que ele apresentou, muito menos no que diz respeito à guerrilha. Não há justificativa para diluir a democracia”, disse. Se de fato as ações tiveram êxito num primeiro momento, não é correto dizer que o Sendero foi completamente derrotado, e evidências recentes demonstram que a força segue viva e atuante no interior do país. O custo institucional foi altíssimo, o Judiciário até hoje vê suas ações comprometidas por conta do estrago realizado nos anos 90.
Na tarde deste último domingo (5), jovens vestidos de vermelho, muitos deles nascidos depois do “autogolpe”, tomaram as ruas de Lima com faixas contra Fujimori e pedindo justiça por crimes contra os direitos humanos. Líderes dos partidos que, na época, eram da oposição manifestaram-se em repúdio a Fujimori. “A democracia tem mecanismos para se defender e ninguém pode dizer que suspende a democracia para defender a democracia. A grande lição que tivemos com a experiência do fujimorismo é que suspender a democracia leva à corrupção e ao autoritarismo”, disse o deputado Carlos Bruce.
De fato, foram os escândalos de favorecimentos e compra de influência que dinamitaram o regime. Quando os famosos “vladi-videos”, que mostravam o chefe do serviço de inteligência, Vladimiro Montesinos, entregando volumosos pacotes de dinheiro a congressistas, vieram à tona, a população ficou escandalizada. Fujimori teve de demitir o funcionário e acabou fugindo do país. Refugiou-se no Japão, e tentou instalar-se aí, por conta de sua cidadania japonesa. Não funcionou, acusado de crimes contra os direitos humanos e por corrupção, numa visita ao Chile, foi preso, extraditado, enviado para o Peru e julgado. Aos 76, Fujimori se encontra preso, cumprindo uma pena de sete anos e meio anunciada em 2009. Ainda está, porém, sendo julgado por várias causas, e pode acabar pegando uma pena perpetua. Uma delas é a acusação de que teria arquitetado um plano de esterilização forçada que vitimou a mais de 250 mil mulheres, principalmente indígenas nas comunidades afastadas, dentro de um plano para exterminar a pobreza. O julgamento da causa está em andamento e estão acusados, além de Fujimori, vários membros do governo e o então ministro da Saúde. Montesinos também está preso, ironicamente na mesma cadeia (El Callao) que o líder do Sendero, Abimail Guzmán.
Apesar da revelação dos abusos políticos e dos crimes contra os direitos humanos, o fujimorismo ainda divide muito as opiniões no Peru. Os que defendem a gestão, dizem que ela lançou as bases para permitir o surpreendente crescimento, de mais de 9% do PIB, nos anos seguintes a seu mandato. Outros afirmam que o país, na verdade, apenas se acomodou numa posição de exportador de matérias-primas e não fez os investimentos que deveria ter realizado na indústria e na infraestrutura local. “Até hoje vendemos pedras. Essa é, basicamente, a base de nossa economia”, explicou à Folha o economista Humberto Campodonico, destacando as volumosas compras chinesas de produtos da mineração, entre os anos 2000 e 2010, como responsáveis pela performance do país.
A Constituição vigente no Peru hoje ainda é a promulgada por ele em regime de exceção, em 1993. Os presidentes opositores eleitos na sequência não conseguiram reunir capital e apoio político no parlamento para reve-la ou lançar as bases para uma nova. Alejandro Toledo e Alan García estão, eles mesmos, sendo investigados também por corrupção. Num cenário em que o atual presidente, um ex-radical nacionalista de esquerda que assumiu uma postura de centro, Ollanta Humala, está com a popularidade em baixa, a candidata com mais intenções de voto para as eleições do ano que vem é a filha do ex-ditador, Keiko. A campanha eleitoral, que está apenas começando, certamente mostrará, por fim, se o “autogolpe” e o fujimorismo são mesmo coisas do passado ou se refletem questões e valores ainda latentes para a sociedade peruana.