Salve Jorge
Quem te viu, quem te vê, Jorge Drexler. Aquele sujeito quietinho, que compunha com doçura e precisão, cantava baixinho e se apresentava com um corte de cabelo impecável desapareceu. Em seu lugar, surge um cinquentão hipster, que ao início do show dança uma coreografia de “boy band” com os músicos e emenda, a partir daí, engata um concerto baseado em ritmos mais caribenhos. Ele, que sempre preferiu fazer shows em teatros, porque assim era possível mostrar cada conjunto de músicas como uma peça única, agora perverte a natureza do espaço, pedindo que todos dancem entre as poltronas. Assim foi a apresentação na última quinta-feira (26), no teatro Bradesco, em São Paulo. Ali, Drexler justificou, como vinha fazendo em entrevistas, essa metamorfose. “Eu cresci no Uruguai durante a ditadura. Dançar era coisa mal-vista e controlada. Havia códigos de conduta. Não se podia dançar livremente.” E acrescenta que, além de ser controlada pelo ambiente repressivo do regime militar (1973-1985), a dança era vista com maus olhos também por aqueles que a combatiam. “Nasci numa família de esquerda, que na resistência só tinha uma preocupação e ela era séria, o fim da ditadura. Diversão não era coisa vista com bons olhos na minha família.”
Por que, então, esse músico tão fortemente inspirado pela bossa nova e pelo cantar baixinho de João Gilberto mudou tanto? “Bailar en la Cueva”, seu mais recente álbum, que funciona muito melhor ao vivo do que no disco, é uma reconciliação do artista com algo que ele considera ancestral na cultura humana, a dança. Para isso, foi à Colômbia, levando consigo sua mesclada equipe de músicos (há espanhóis, argentinos e uruguaios) e gravou aí, bebendo das fontes da cumbia e do vallenato locais. Há presença do samba, mas a milonga, seu gênero platense mais marcante, ficou claramente num segundo plano. Funcionou, sim. Mas seria OK se esta fosse apenas uma experiência e não uma guinada definitiva na carreira. Apesar de o público responder e sair dançando, os momentos altos do show ainda são quando o “velho” Drexler aparece, como nas canções “Al Otro Lado del Río”, composta para o filme de Walter Salles, “Diários de Motocicleta”, e “Sea”.
Não é nada comum, no Brasil, que um artista cante em espanhol e tenha um coro de gente que conhece as letras em detalhe acompanhando-o. Mais, o público ainda pedia músicas e ajudava Drexler a traduzir palavras cuja tradução para o português ele não conhecia. Para um país que vive de costas para seus vizinhos da região, é um avanço. Grande mérito de Drexler. Não faltou, ainda, o momento em que o artista teve de falar de seu conterrâneo mais famoso, também essencial na derrubada de pontes entre Brasil e Uruguai. “Viva Mujica!”, gritou, lá pelas tantas, um sujeito na platéia. Drexler riu. “Sabia que isso ia acontecer.” E saiu a tecer elogios ao ex-presidente uruguaio, culminando com uma anedota. Em suas recentes férias com a família, numa praia uruguaia, ouviu de dois moleques: “vamos mujicar?”. “Demorei a entender, mas me dei conta de que o Mujica também virou verbo e agora substitui o ‘vamos fumar um?´de antes.” O público deu risada.
O músico agradeceu São Paulo, onde os ingressos para a apresentação de quinta esgotaram 40 dias antes do show, recorde em toda a turnê de mais de um ano de “Bailar en la Cueva” _que termina agora. Acostumado a teatros com bem mais personalidade e tradição histórica, como o Solís de Montevidéu e o Gran Rex de Buenos Aires, o artista não se importou tanto com o fato de estar se apresentando dentro de um teatro novo, situado num shopping center, ao qual o público chega principalmente de carro e consome bebidas caras. Não há como não notar, porém, que seu trabalho não combina muito com esse tipo de espaço. Quem gosta de sua música certamente o prefere cantando num espaço mais convencional, encaixando de forma quase matemática os versos numa melodia calculada e interpretada com a singeleza e a beleza de sempre. Resta a curiosidade para saber se o cantor seguirá esse novo caminho, aberto com sucesso e bastante ousadia, ou se volta a encontrar o artista que sempre foi. Que o brilho das estatuetas de Oscar e de Grammys que ele vem ganhando até aqui não confundam sua visão.