“Radicais” acordam e veem chance de mudar o rumo da eleição argentina
No ano que vem, completam-se 100 anos da eleição de Hipólito Yrigoyen, a primeira a ocorrer na Argentina por meio de sufrágio universal e secreto (o voto feminino só seria viabilizado nos anos Perón). Tendo ocupado o cargo em duas ocasiões (1916-22 e 1918-30), Yrigoyen liderou o país em sua época de vacas gordas e fortaleceu os conceitos que se transformariam na bandeira dos chamados “radicais” (membros da União Cívica Radical) ao longo do tempo: a defesa de uma república laica, nacionalista e liberal. Sua deposição, em 1930, marcaria o início de uma série de regimes militares que governaram o país no século 20. Com primórdios marcados pelo confronto e pelas ações violentas, a União Cívica Radical, partido mais antigo da Argentina e principal opositor do que viria a ser o peronismo, pode voltar a jogar um papel de protagonismo agora que o país passa por mais um processo eleitoral.
Em baixa desde as desastrosas saídas antecipadas do poder de Raúl Alfonsín (em 1989, devido à hiperinflação) e de Fernando De la Rúa (em 2001, devido à crise econômica), os “radicais” mantiveram-se num estado semi-moribundo nos últimos dez anos. A falta de novas lideranças (o filho de Alfonsín, Ricardo, teve um desempenho apático na eleição de 2011), a não renovação da agenda, e uma adesão suspeita de parte de seus congressistas ao kirchnerismo foram ditando a derrocada da centenária instituição argentina. Seu último líder com algum poder foi o tão achincalhado pelos peronistas Julio Cobos, que aceitou compor a chapa presidencial de Cristina Kirchner em seu primeiro-mandato, virando seu vice-presidente, e depois surpreendentemente passando uma rasteira na chefe, na votação das retenções da soja, que enemistou o governo com os ruralistas e a imprensa independente.
A poucos meses de uma nova eleição, os “radicais”, com seus 40 deputados e 14 senadores, podem ser a esperança dos não-kirchneristas de finalmente tirar essa vertente peronista do poder (onde está desde 2003, com a eleição do falecido Néstor Kirchner). Porém, a descaracterização do partido sofrida nos últimos tempos também pode leva-lo exatamente ao extremo oposto, caso as principais lideranças prefiram compor com um governo peronista, como fizeram na atual gestão. Na última semana, na convenção de Gualeguaychu, a UCR iniciou um movimento com relação à primeira hipótese, decidindo disputar as primárias com o PRO (Proposta Republicana) e a Coalición Cívica.
Se essa proposta se mantiver, teremos uma disputa acirradíssima entre essas três forças, antes do primeiro turno. A UCR jogará com sua estrutura parlamentar e presença nas demais províncias do país para tentar emplacar como candidato presidencial um líder popular na região cuyana (Mendoza, San Juan e San Luis), o senador Ernesto Sanz. Já o PRO, de estrutura nova e limitada, com influência que pouco se estende para além da cidade de Buenos Aires, tentará sua corrida à Presidência, adiada desde 2011. Seu principal nome é o governador da capital federal, Mauricio Macri, filho de empresários e ex-presidente do Boca Juniors, nome que surgiu após o vazio da crise de 2001 e respondendo ao clamor por renovação da política expresso na frase “que se vayan todos” (fora todos os políticos). Pela Coalición Cívica, concorre a estridente deputada Elisa Carrió. “Lilita”, já derrotada nas urnas por Cristina Kirchner, é um ícone da indignação de muitos argentinos com a corrupção e o nepotismo. Tida como muito explosiva para lograr administrar algo, “Lilita” transformou-se, nos últimos anos, em voz necessária num Congresso tomado pelo clientelismo. No caso de não esfarelar devido às diferenças ideológicas dos três grupos, uma candidatura de um dos três mencionados acima, apoiada pelos demais, pode oferecer uma alternativa consistente de oposição.
Das três disputas das PASO (primárias, disputadas em agosto), esta será a única realmente concorrida. Por ora, as outras duas devem definir Sergio Massa, pela dissidência do peronismo, e Daniel Scioli, pela Frente para a Vitória, coalizão peronista de Cristina. Nas últimas semanas, a presidente começou a sugerir que poderia apresentar outro candidato para essa disputa, e os ministros dos Transportes (Florencio Randazzo) e da Economia (Axel Kiciloff) estariam cotados.
Analistas sugerem, porém, que Cristina esperaria até o último momento para decidir quem apoiará. Caso a crise econômica se agrave, dizem alguns, ela pode preferir não se esforçar para fazer um sucessor e manter-se como líder da oposição, até mesmo com uma cadeira no parlamento (apresentando-se como candidata à deputada). Nesse último caso, teria espaço para criticar os inevitáveis ajustes e cortes de benefícios que o novo governo terá de fazer, e capitalizaria novamente o momento adverso, reunindo a militância kirchnerista, liderando a Cámpora, e reapresentando um kirchnerismo competitivo em 2018.
É curioso notar como o caso Nisman, ao contrário do que a opinião pública internacional imagina, não parece afetar tanto a corrida presidencial, pelo menos por enquanto. Segundo as pesquisas mais recentes, o candidato até agora preferido de Cristina (Daniel Scioli) possui 31% das intenções de voto. Em leve ascensão, o candidato que mais se opõe à presidente, Maurício Macri, tem apenas 27%, e Sergio Massa, que largou na frente nas legislativas de 2013, está em declínio (25%) e pode acabar preferindo entrar em alguma coalizão, negociando seu eleitorado.
O que mantém Scioli à frente são sua persistência dentro do peronismo (foi vice de Néstor), sua imagem de lealdade à proposta e um discurso muito forte com relação ao combate à criminalidade (uma demanda muito importante dos eleitores locais). Além disso, como reafirmam intelectuais como Martín Kohan e Beatriz Sarlo, não há força ou notícia impactante capaz de tirarem de um candidato peronista, seja ele quem for, o mínimo de 30% de votação certa em qualquer eleição.
A UCR, porém, terá uma nova chance se souber se colocar dentro dessa tríade aliança a ser definida nas PASO, capitalizar o sentimento anti-cristinista, e jogar em coordenação com suas forças no interior. Diferentemente do peronismo, que se assemelha mais a uma cultura, disseminada em várias agrupações, do que uma foça única, o “radicalismo” é, sim, um partido político estruturado e enraizado na história argentina, com ex-líderes respeitados para além de disputas ideológicas (Frondizi, Alfonsín e o próprio Yrigoyen).
Pode parecer complicado ao leitor brasileiro entender o que está em disputa, até porque “direita” e “esquerda” não são termos políticos tidos como referência (há direitistas e esquerdistas dentro do peronismo, do radicalismo etc) no debate argentino, no qual ainda têm voz ícones mortos há muito tempo, como os próprios Perón e Yrigoyen. Por outro lado, questões comuns entre Brasil e Argentina não são poucas: corrupção, crise econômica pós-bonança das “commodities” e ascensão de uma nova classe média estão entre elas. Vale acompanhar, a novela desta eleição argentina ainda promete surpresas e reviravoltas.