Quem é o “novo” presidente do Uruguai
É certo que José “Pepe” Mujica é bastante querido para muitos uruguaios _os que lotaram a plaza Independência, na sexta-feira, para despedir-se dele, e a alta aprovação com a qual deixa o cargo (60%) são prova disso. Mas, se formos resumir em uma palavra o que sentem com a passagem do bastão presidencial de Mujica a Tabaré Vázquez os cidadãos nas ruas, os analistas políticos, os empresários, os militantes e os garçons dos cafés da 18 de Julio, esta seria, sem dúvida: “alívio”. Mais uma vez, não se trata de uma questão de afeto. É fato que Mujica termina sua gestão de modo positivo, não apenas porque o Uruguai vai relativamente bem do ponto de vista econômico, mas porque o ex-guerrilheiro soube respeitar e fortalecer as instituições democráticas e fazer, de quebra, uma excelente propaganda do país no exterior, com suas badaladas leis civis. Porém, é preciso lembrar que, em 2010, uma sensação de suspense coletivo era sentida nas ruas de Montevidéu. Mesmo os mais entusiastas militantes esquerdistas sentiam uma pontinha de medo e perguntavam: “será que ele consegue?”. Não por minimizar a capacidade intelectual do veterano tupamaro, muito menos por um preconceito de classe (tema que, pode assustar-se, praticamente não existe no Uruguai), mas por conta de sua formação e atitudes diante da política. Por um longo período, Mujica acreditara na luta armada como principal ferramenta de atuação. Por outro longo período, estivera preso e em condições dificílimas, em alguns momentos completamente isolado, sem saber como as coisas seguiam em seu país. Os que conviveram com ele nos tempos de tupamaro, na cadeia e na redemocratização, falavam de um homem de comportamento intempestivo, de muitas idas e vindas, e de pouca capacidade para negociar com quem estava em sua antípoda ideológica.
Mujica deu uma resposta a essas críticas governando bem, ainda que falhas sejam apontadas em algumas áreas, como a educação e a segurança. Mas o fato é que os uruguaios, de um modo geral, preferem os pés no chão e os modos de estadista de Tabaré Vázquez ao jeito anárquico de tomar decisões do “comandante Facundo” (seu pseudônimo nos anos de militância). Um retrato bastante interessante do ex (2005-2010) e atual presidente do Uruguai está no livro “El Método Tabaré” (Sudamericana), da jornalista Cecilia Custodio Ruibal. “Tabaré é mais previsível, cauteloso e hábil politicamente. A fórmula que usou na gestão passada deu resultados. O método que usa é simples: expõe-se pouco, quase não dá entrevistas, delega bastante mas, no final, decide sozinho”, conta à Folha a autora, em entrevista por telefone.
Tabaré (os uruguaios preferem chamá-lo pelo primeiro nome) chegou ao poder pela primeira vez, em 2005, num momento oportuno. O Uruguai recuperava-se da crise de 2001-02, sofrida principalmente por conta da instabilidade na Argentina. Animado com as crescentes vendas de produtos agrícolas para a China, o país chegou a crescer 8%. A exemplo de Lula e de outros governos latino-americanos do período, Tabaré pôde fazer a transferência dessas entradas à população mais carente, por meio de programas de assistência e investimentos em educação. Mujica não era seu sucessor preferido dentro da Frente Ampla, mas Tabaré respeitou a decisão do partido e apoiou o ex-guerrilheiro. Com ele, tem algumas diferenças. Se Mujica não gostava do protocolo, quase não vestiu terno e gravata e não se mudou para a residência oficial, Tabaré é muito vaidoso, está sempre impecável e adora a liturgia do cargo.
Ambos pertencem a agrupações distintas dentro da coalizão esquerdista Frente Ampla. Tabaré é do partido Socialista, Mujica, do Movimento de Participação Popular. Quando esteve no poder, Tabaré foi muito insistente em levar ao banco dos réus os responsáveis pela ditadura militar (1973-1985). Já Mujica, ele mesmo um ex-preso político e ex-guerrilheiro anistiado, preferiu virar a página e não incentivar o que considerava uma política revanchista, a de julgar amplamente quem cometeu crimes na época. Mujica levou adiante e logrou persuadir o Congresso a aprovar as leis da maconha e do aborto. Tabaré não gosta de nenhuma das duas. Da primeira, por ser médico oncologista e opositor ao consumo de drogas. Quanto à segunda, fez de tudo para barrá-la quando estava no cargo. Casado com a católica fervorosa Maria Auxiliadora, Tabaré reuniu assinaturas, discursou, e segurou a liberação do aborto o máximo que pôde. Mas, apesar de sua posição crítica a ambas, Tabaré reafirmou durante a campanha que nada fará na tentativa de derrogá-las, uma vez que foram aprovadas pelo Congresso uruguaio: “Sou antes de tudo um legalista”, repete sempre.
O livro de Ruibal traça a trajetória de Tabaré desde a chegada à prefeitura de Montevidéu até as vésperas da eleição do ano passado, em que venceu no segundo turno o candidato do partido Nacional, Luis Lacalle Pou. Centra-se, sobretudo, no aspecto político de seu caminho, e no modo como governou. “Procurei descobrir Tabaré através das pessoas que o rodeavam, de como formou e exerceu o poder”, conta. Passagens anedóticas também são narradas, como a campanha contra o tabaco, na qual questionou um tango clássico, “Fumando Espero” (1922), ou o sério entrevero que teve com a Argentina por conta de uma fábrica de celulose _anos depois, Tabaré confessaria que chegara a imaginar uma guerra de verdade com o país vizinho, mas que desanimara ao ser informado que não possuía aviões em número suficiente.
Tabaré possui, ainda, um carisma conferido por sua biografia antes da política. Nascido no subúrbio portuário de La Teja, decidiu especializar-se em oncologia na França após a morte dos pais e do irmão, vitimados por câncer. Foi presidente de um clube de futebol do bairro, o Progreso, e dirigiu um outro, social, o Arbolito, todos na vizinhança de onde nasceu. Na campanha presidencial, visitei La Teja, e entendi um pouco como começou a ver o mundo o atual presidente. Bairro de classe média baixa, que fala um castelhano quase interiorano, mas que convive ao mesmo tempo com imigrantes chineses e europeus, fincados ali pela proximidade do porto, La Teja é um lugar acolhedor e bastante familiar. Na praça principal do bairro, o vendedor de ovos conta que jogara futebol com o irmão do presidente, e a maioria dos moradores mais velhos lembrava dele acordando cedo e indo estudar e trabalhar. Tabaré firmou-se como um dos principais médicos oncólogos da região e tentou exercer a medicina junto com o primeiro mandato, mas teve de afastar-se de sua clínica para atender apenas a casos especiais. Quando deixou a presidência, voltou a usar o jaleco de médico, que agora volta a pendurar para voltar ao posto máximo do país. Durante a campanha eleitoral, o oposicionista Lacalle Pou acusou Tabaré de manter o “monopólio do câncer” e ganhar muito dinheiro com sua clínica na capital.
Uma das coisas que selaram o apoio mútuo de Tabaré a Mujica foi o fato de cada um ter um homem de confiança no governo do outro. Tabaré aceitou Mujica presidente quando ele levou Danilo Astori, que fora seu ministro de economia, para ser seu vice. Já Mujica influenciou para que Tabaré levasse Raúl Sendic, filho de um líder tupamaro histórico, também chamado Raúl Sendic (1926-1989), para ser seu vice. Vinte anos mais jovem que Tabaré, Sendic filho tem sido observado com atenção pela possibilidade considerável de virar o presidente caso alguma doença ou outro evento impeçam Tabaré de completar o mandato. Já Astori, que parece enterrar sua possibilidade de ser ele mesmo um candidato a presidência em algum momento, volta a ser ministro da Economia.
Em entrevista à Folha, o especialista em América Latina da Universidade de Harvard Steven Levitsky disse que Tabaré tem tudo para começar bem o governo, até porque possui maioria no Congresso e maneja um país sem grandes problemas de desigualdade e desemprego. Porém, chama a atenção para o momento que vive o continente. “Não é o mesmo cenário que tinha em 2005. O país não vai crescer como naquele período, é um momento mais difícil em toda a região, de desaceleração econômica, e de dificuldades institucionais profundas em países próximos, como Venezuela e, especialmente para o caso uruguaio, a Argentina. Ele terá mais dificuldade em atender as carências dos mais pobres, terá de fazer ajustes, e isso pode afetar a imensa popularidade que tem hoje.” Levitsky também aponta como um problema o fato de Tabaré ser hoje um homem mais velho (acaba de completar 75) e que pode faltar-lhe energia.
Abaixo, uma entrevista de Tabaré à televisão pública argentina, de alguns anos atrás. O entrevistador é o político kirchnerista Daniel Filmus, e por isso as perguntas complacentes e elogiosas. Apesar de pouco crítica, é um bom retrato de Tabaré, que repassa sua infância e principais momentos na presidência do país. Explica, um pouco, porque foi eleito com 77% dos votos em 2004, e deixou o posto tão em alta, com mais de 80% de aprovação popular.