Morre Strassera, o homem que sentenciou: “Nunca Más”

Sylvia Colombo

“Senhores juízes: quero renunciar expressamente a toda pretensão de originalidade para finalizar esse pedido. Quero utilizar uma frase que não me pertence, porque pertence já a todo o povo argentino. Senhores juízes: Nunca mais!”.

Com essas palavras, o promotor argentino Julio César Strassera, morto nesta sexta, encerrou sua acusação contra nove chefes militares que haviam governado a Argentina com mãos de ferro e derramado rios de sangue entre os anos de 1976 e 1983. Num episódio sem precedentes na história da América Latina, o “Juicio a las Juntas” condenou cinco dos principais dirigentes que levaram adiante a repressão a opositores da ditadura na Argentina _causando mais de 20 mil mortes. Por conta da acusação de Strassera, Jorge Rafael Videla (1925-2013), Emilio Massera (1925-2010), Roberto Viola (1924-1994), Armando Lambruschini (1924-2004) e Orlando Agosti (1924-1997) receberam penas de 5 anos à prisão perpétua. O que dá singularidade ao caso argentino é o fato de o julgamento ter ocorrido em pleno ano de 1985, recém-recuperada a democracia e com os militares ainda inquietos nos quartéis, ameaçando um retorno. Durante todo o processo, Strassera e os juízes encararam ameaças de morte, enquanto bombas eram colocadas em escolas de Buenos Aires e em outras instituições públicas. Desde o julgamento dos nazistas em Nuremberg, nos anos 40, líderes de governo não eram levados ao banco dos réus. O “Juicio a las Juntas” também julgou crimes cometidos pela guerrilha.

O vídeo acima é emocionante e perturbador. Strassera lê a acusação diante dos dirigentes militares alinhados à sua frente como réus. Depois de sua fala, o público presente no tribunal levanta para aplaudir. Sabemos que, do lado de fora, estavam também representações de grupos de direitos humanos e familiares de desaparecidos, alguns ainda com a esperança de voltar a ver seus parentes com vida. O país, ainda paralizado pelo medo mas tomado pela emoção, acompanhou cada capítulo do processo.

A morte de Strassera, nesta sexta-feira, em Buenos Aires, foi lembrada com comoção por políticos à esquerda e à direita. Divulgou-se que ele havia expressado a vontade de comparecer à marcha em homenagem ao promotor Alberto Nisman, morto de forma misteriosa em janeiro. Os médicos, porém, o proibiram de deixar o hospital, onde estava internado por doença respiratória. Tinha 83 anos.

Em 1985, Strassera havia sido escolhido pelo então presidente Raúl Alfonsín (1982-2009) para levar adiante a acusação contra os militares responsáveis pela repressão. O Conselho Supremo das Forças Armadas se recusara a realizar um julgamento militar. O caso, então, migrou para a Justiça comum. O trabalho de Strassera não teria sido possível se não houvesse existido, antes, ainda, uma comissão da verdade (Conadep – Comissão Nacional do Desaparecimento de Pessoas). Outra iniciativa de Alfonsín, o grupo reuniu um imenso número de depoimentos e documentos que ajudaram a compor a base da acusação. Adiante da Conadep estavam o escritor Ernesto Sábato (1911-2011), a ativista Graciela Meijide (que perdera um filho de 17 anos numa ação da repressão dentro de sua própria casa) e outros.

Líderes militares durante o "Juicio a las Juntas" (Foto: Reprodução)
Líderes militares durante o “Juicio a las Juntas” (Foto: Reprodução)

Depois do julgamento, Strassera foi enviado a Genebra como embaixador argentino nas Nações Unidas. Só deixaria o posto nos anos 90, quando o então presidente Carlos Menem começou a conceder indultos aos presos políticos, com a justificativa de acalmar os ainda acesos ânimos e conciliar diferenças. Junto às leis de Obediencia Devida e Ponto Final, promulgadas depois pelo próprio Alfonsín, os indultos de Menem fizeram com que as condenações do “Juicio a las Juntas” se esvaziassem na prática. Permaneceram, porém, como forte símbolo de reação da sociedade aos bárbaros crimes cometidos pelo Estado de forma sistemática.

Nos anos do kirchnerismo, porém, Strassera caiu num desgosto sem fim. Feliz inicialmente pela retomada dos julgamentos a partir do início do governo de Néstor, logo se posicionou de forma crítica ao uso político que o casal passou a fazer das condenações. Strassera contestou primeiro Néstor, que dizia que nada havia sido feito em termos de Justiça desde a retomada democrática. Depois, Cristina, por querer “apoderar-se da bandeira” dos direitos humanos.

Que Strassera tenha morrido agora, no meio da mais severa crise institucional da história recente da Argentina, causada pela morte não esclarecida de outro promotor, é de uma simbologia fúnebre e negativa. Tomara que fiquem na história mais momentos como o do vídeo acima, em que a história se esclarece e os responsáveis pagam pelo que fizeram.