“Las 17”, o grito das mulheres de El Salvador
Agora que há um novo retrocesso no Brasil com relação à legalização do aborto, com as declarações do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, é pertinente lembrar o que está acontecendo num país onde o aborto é completamente proibido e severamente punido em todas as circunstâncias (incluindo os provocados por causas naturais), e com grande respaldo de parte da sociedade.
Desde dezembro, grupos de direitos humanos projetaram El Salvador na mídia internacional com a campanha “Las 17”. O intuito é pedir o perdão a 17 mulheres presas e condenadas a mais de 40 anos de prisão por realizarem abortos clandestinos ou simplesmente por terem perdido os bebês de forma natural (nesse caso, foram acusadas de terem provocado o aborto). O grupo também espera que o Congresso volte a discutir o tema e que levante a proibição, e suas severas penas, pelo menos para os casos de má-formação do feto, estupro, e risco de vida da mãe.
Existem apenas seis países no mundo que, anacronicamente, mantêm a proibição completa do aborto, quatro deles na América Latina. Ao lado de El Salvador estão Chile, República Dominicana, Nicarágua, Malta e Sudão. O sistema de El Salvador é considerado o mais extremo de todos, porque envolve médicos e funcionários de hospitais, que são obrigados por lei a denunciar cada complicação de gravidez que possa sugerir que houve uma tentativa de aborto. Entre as 129 mulheres processadas entre 2000 e 2011, 49 foram condenadas. Mais da metade delas apenas perdeu o bebê num aborto natural. Ainda assim, estão na cadeia por homicídio culposo grave. O vídeo da Anistia Internacional, acima, mostra como se dão os casos mais comuns.
Segundo o ministério da Saúde local, são feitos em El Salvador cerca de 19 mil abortos clandestinos por ano. As estimativas das organizações de direitos das mulheres são de pelo menos o dobro disso. Um quarto das mulheres que abortam tem menos de 18 anos, a maioria é pobre e vive na região rural. Por outro lado, é comum que as mulheres mais afortunadas tenham acesso à clínicas de aborto clandestinas particulares, ou que viajem ao México ou à Colômbia para obte-los.
As organizações de direitos das mulheres salvadorenhas obtiveram, em janeiro, sua primeira vitória. Uma das 17 presas, Carmen Guadalupe, obteve o perdão do Congresso (ainda precisa ser aprovado pelo presidente Sanchez Cerén), e deve recuperar sua liberdade logo. Guadalupe já ficou sete anos presa e está condenada a 40. Vítima de estupro, ela relata ter tido um sangramento no meio da gravidez. Levada ao hospital, acordou algemada à cama. Em vez de homens vestidos de branco, conta, foi rodeada por policiais, que esperaram que ela se recuperasse para leva-la à cadeia.
A libertação de Guadalupe é consequência de outra campanha, que mobilizou o país no ano anterior. O chamado “caso Beatriz” também levou a questão do aborto em El Salvador para o noticiário internacional. A menina Beatriz, de 22 anos e portadora de lupus, ficou à beira da morte por 27 semanas, com os médicos dizendo que sua vida corria perigo e que o feto não sobreviveria. Enquanto aguardavam uma decisão da Justiça para realizar a operação que poderia salvar sua vida, os apoiadores da causa do aborto cercaram o hospital e o parlamento, com faixas e pedidos de que a operação, que resultaria na morte do feto, fosse liberada. Grupos pró-vida, apoiados e estimulados pela Igreja Católica também compareceram. Ao final, a cirurgia foi autorizada, Beatriz foi salva, enquanto o feto não resistiu, como previsto pelos médicos. Porém, sua reintegração à sociedade segue sendo complicada. Como todas as mulheres que abortam, Beatriz vem sofrendo preconceito entre amigos e familiares.
Outro caso que virou bandeira para os defensores da causa é o de Maria, mãe de dois filhos, 30 anos, que foi presa em 2008. Condenada a 30 anos de cadeia após sofrer um aborto natural, Maria descobriu, já atrás das grades, que sofria de um câncer. Não recebeu tratamento e morreu em 2010.
Cada vez mais estruturados e sem medo de vir à público, os grupos de defesa dos direitos das mulheres salvadorenhas vêm pedindo que o governo reveja a severidade desta lei. Enquanto o mundo avança noutra direção, El Salvador mantém uma legislação primitiva e que não respeita os direitos humanos das mulheres. O Chile já deu um passo para derrubar a proibição total do aborto, com uma lei levada ao Congresso por Michele Bachelet e que deve ser aprovada ainda neste ano. Que seu exemplo irradie aos outros três países da região que, com respeito a esse assunto, ainda vivem na idade das trevas.