“Chegou algo que não estava no debate político, e que obscurece tudo: a violência”, Jorge Lanata
Encontrei-me com Jorge Lanata em Buenos Aires dois dias antes da misteriosa morte do promotor Alberto Nisman, que havia acusado o governo Cristina Kirchner de encobrir evidências e de favorecer suspeitos do atentado à AMIA, em 18 de julho de 1994. Nisman, que apresentaria nesta segunda as escutas telefônicas e demais provas com as quais embasou a acusação, foi encontrado morto na última madrugada, no apartamento em que vivia, em Puerto Madero. Ouvindo a gravação hoje, para escrever esse texto, a sensação foi de espanto. Como eu e Lanata, na última semana só se falava de Nisman na Argentina, mas como alguém presente e vivíssimo, que logo viria a público com revelações surpreendentes. A sensação de espanto coletivo, consternação, incerteza diante do inesperado foi o que se sentiu nas conversas e comentários das pessoas nessa terrível segunda-feira. Voltei, obviamente, a falar com Lanata, para atualizar nossa entrevista. E o resultado do papo vai abaixo. O motivo inicial era falar de seu livro “A Década Roubada”, que agora sai em português, em edição da Planeta. Trata-se de um apanhado bem minucioso dos altos e baixos desse governo, trazendo bastante informação sobre os escândalos mais famosos (enriquecimento ilícito, Lázaro Baez, maleta venezuelana, etc) Mas é claro que extrapolamos os limites do livro. Leia os melhores trechos da conversa com este que é um dos principais e mais combativos jornalistas da Argentina hoje.
Folha – O que muda depois dessa misteriosa morte?
Jorge Lanata – Acaba de entrar na discussão política argentina um elemento que não estava presente, e que obscurece tudo: a violência. Não estou dizendo que o governo seja o culpado, mas agora ele tem a responsabilidade de esclarecer, o quanto antes, o fato, porque é acusado.
Folha – Qual a importância das acusações que Nisman havia feito?
Lanata – São uma coisa seríssima, antes de mais nada, porque citavam diretamente a Cristina como alguém que encobriu evidências que ajudariam a resolver o mistério do atentado contra a AMIA.
É verdade que está sendo questionado o “timing” das revelações, por que saíram agora, no início da corrida eleitoral, e apenas semanas após Cristina tirar do cargo o diretor-geral de Operações da Secretaria de Inteligência, Antonio Stiusso? Tudo bem, é certo que a denúncia vem à tona devido a um ajuste interno dos serviços, afinal, Nisman era muito ligado a Stiusso. Porém, isso não quer dizer que as acusações sejam falsas. Acho que tudo é verdadeiro. E muito menos se pode dizer que as informações tenham sido obtidas de forma ilícita. O governo saiu defendendo-se dizendo que as escutas aos dirigentes envolvidos não tinham sido autorizadas, só que lembrou-se que, sim, havia autorizado a escuta de Jorge Khalil [representante informal do governo iraniano]. Bom, o fato é que os envolvidos ligavam para Khalil. Portanto…
Eu creio que as acusações são verdadeiras. Nisman era muito ligado às embaixadas norte-americana e israelense, portanto não acredito que faria a acusação sem evidências. E o governo foi tão evasivo em sua resposta que me sugere que estariam esperando para saber o que mais Nisman possuía. Queriam esperar para saber como atacar.
Mas nada disso me espanta, com relação a Khalil principalmente, sempre houve embaixadas paralelas nesse governo, como a da Venezuela, e essa, iraniana, é só mais uma.
Folha – Como vê o cenário eleitoral, hoje?
Lanata – Muita coisa pode acontecer. Cristina ainda não tomou uma decisão. Por enquanto, pinta que Daniel Scioli [governador da província de Buenos Aires] seja o escolhido do kirchnerismo, mas em algum momento ela pode descarta-lo, se achar que é mais conveniente ter alguém mais ligado a ela, como [Florencio] Randazzo [ministro dos Transportes] ou [Axel] Kicilloff [ministro da Economia]. Scioli ainda pode ser deixado pra trás, e terá de entrar às pressas em outro partido para concorrer.
Tudo depende do que Cristina queira fazer com a “seita” que criou com o kirchnerismo. Virá um ano difícil na economia, o novo presidente terá de fazer ajustes. Ou seja, para ela também pode ser conveniente estar na oposição, poder fazer críticas enquanto reorganiza o grupo para voltar na eleição seguinte. É uma possibilidade. Não estou tão certo de que queira um sucessor muito identificado a ela. Mas este é um ano de muita agitação política, além das eleições presidenciais, há governamentais em vários estados, definição de candidaturas de prefeitos em todo o país. Muita coisa ainda pode acontecer.
Folha – Em seu livro recém-lançado no Brasil, você fala de uma “grieta” (fenda) aberta na sociedade nos últimos dez anos. Essa fenda deve se agravar ou diminuir?
Lanata – Acho que persistirá e ainda por muito tempo. Cristina não ganhou contra o Clarín, mas colocou sua marca em vários lugares, criaram-se várias universidades por aí, onde hoje há professores e jornalistas “militantes” [engajados, a favor do governo], eles continuarão militando, pode ser que agora na oposição. A ideia de batalha cultural, contra as “corpos” [corporações], contra o imperialismo está muito bem plantada para boa parte da sociedade.
Além disso, dependendo do próximo presidente, a estrutura de financiamento por parte de verba de publicidade das emissoras e meios favoráveis ao governo pode continuar. Se for Sergio Massa ou Scioli, é possível que precisem também dessa estrutura e não a desmontem. Com Mauricio Macri [prefeito de Buenos Aires] pode ser diferente, ou não. Não estou seguro de que a chamada “batalha cultural” termina nessa gestão.
Folha – Por que você chama o período em que o kirchnerismo ficou no poder (2003 a 2015, um pouco mais de dez anos) de década roubada?
Lanata – Talvez o mais correto seria dizer “década desperdiçada”, porque nunca as condições políticas e econômicas foram tão boas para colocar a Argentina num caminho de prosperidade. Não vão se repetir os anos de bonança devido ao preço das “commodities” [a Argentina chegou a crescer 9% ao ano, principalmente devido à venda de soja para a China]. Outros países souberam investir bem o que ganharam, melhoraram a infraestrutura, aqui o dinheiro entrou e não aproveitamos. As condições políticas que o kirchnerismo encontrou ao chegar ao poder [com Néstor, em 2003] também não vão se repetir. Este governo teve mais de dez anos para propor algo novo, um caminho, conciliar a sociedade, e só o que se fez foi colaborar para que se polarizasse ainda mais.
Folha – A questão dos direitos humanos é uma bandeira que persiste? Por fim, julgou-se muitos militares, Videla morreu na prisão, Estella de Carlotto achou seu neto…
Lanata – Creio que nada disso supera o maior fracasso, que foram as notícias sobre corrupção das Mães da Praça de Maio [em 2012, surge o escândalo das moradias populares, que estavam sob o comando dessa linhagem das mães de desaparecidos, e foram acusadas de desvio de verbas], o envolvimento com Schoklender [administrador das contas da associação, e assassino dos pais na juventude].