O fantasma do terrorismo desperta na Argentina
Às vésperas do início oficial da corrida eleitoral deste ano, a Argentina desperta com o perturbador retorno de uma tragédia insepulta. O atentado contra a Associação Mutual Israelita Argentina, ocorrido em 18 de julho de 1994 e que causou 86 mortes (85 civis + o terrorista), voltou à pauta do dia, desta vez na forma de uma séria acusação contra a atual presidente, Cristina Kirchner.
Na última semana, o promotor Alberto Nisman denunciou a mandatária e seu chanceler, Hector Timerman de encobrirem iranianos que estavam sendo investigados pelo atentado. Desconfia-se que a ação tenha sido motivada por questões comerciais. Por meio do suposto acordo, a Argentina intensificaria a exportação de grãos ao Irã, que por sua vez retribuiria com petróleo, ajudando o país sul-americano a aliviar seu crítico déficit energético atual. De fato, o intercâmbio entre os dois países vem num crescendo que justificaria a movimentação. De US$ 5 milhões em 2006, passou para US$ 800 milhões, em 2014.
Se a acusação se confirmar, porém, não será a primeira vez que a palavra “encobrimento” é mencionada no que diz respeito ao governo argentino com relação às investigações. Falta de vontade política, pouca habilidade e provavelmente intenção de obstruir as investigações por meio da destruição de provas marcaram o período de 21 anos desde a tragédia.
Ainda nos anos 90, durante o governo de Carlos Menem, substanciais evidências teriam desaparecido de maneira misteriosa. A imperícia ao tratar os achados nos escombros também excedeu limites. Até mesmo uma cabeça humana que poderia ter pertencido ao homem que levou a bomba até o local, com uma pequena van, teria sido encontrada no meio das ruínas e atirada numa lata de lixo.
Os governos seguintes não se comportaram melhor. Apesar de chamar o caso de “desgraça nacional”, Néstor Kirchner (1950-2010) não contribuiu para a solução do crime. Em setembro de 2004, dentro de sua gestão, foram inocentados vários dos acusados de fazerem parte da chamada “conexão local”, ou seja, as ligações entre os supostos mandantes iranianos do crime e os que levaram a ação adiante em Buenos Aires. Já o juiz federal Juan José Galeano, responsável até então pela causa, acabou sofrendo “impeachment” devido às irregularidades na investigação.
Na gestão Cristina, iniciada em 2007, houve uma decisão política em outro sentido. O governo ofereceu, por meio de um acordo, em 2012, benefícios aos acusados iranianos, que poderiam responder ao processo em seu país e com amplo acesso a provas. Questionado pela oposição, o acordo foi costurado pelo chanceler Hector Timerman, ele mesmo de origem judaica e filho de um famoso jornalista, Jacobo Timerman (1923-1999), perseguido e exilado durante a ditadura.
Por enquanto, o clima é de expectativa, o governo argentino reagiu com negativas, porém muito evasivas. A cúpula kirchnerista espera que sejam reveladas as evidências que o promotor possui, e que têm origem em escutas telefônicas autorizadas pela Justiça, envolvendo acusados e um representante informal do governo iraniano no país. Na semana que vem, já será possível medir a força das acusações e um provável impacto na campanha eleitoral deste ano.
Um repasse nos relatos e obras artísticas gerados a partir do crime só reforçam que a palavra “encobrimento” vem predominando na narrativa do caso desde seu início. Um dos principais filmes realizados com esse mote, “18J”, em que 10 cineastas gravaram curtas relacionados à tragédia, já aponta para a conivência dos políticos de então com o ato criminoso _crime bárbaro dentro de outro crime bárbaro. Abaixo, o link para o melhor dos curtas, não por acaso intitulado “Verguenza”, dirigido por Alejandro Doria, com a veterana e excelente atriz Susu Pecoraro no papel principal e o tango “Balada para mi Muerte”, cuja letra encaixa-se, de maneira mórbida e perfeita, aos acontecimentos.