Viver e morrer “tangamente”
“Moriré en Buenos Aires,/ será de madrugada/ guardaré mansamente las cosas de vivir,/ mi pequeña poesía de adioses y de balas, /mi tabaco, mi tango, mi puñado de esplín”. Horacio Ferrer se despediu mais ou menos como tinha anunciado na letra de “Balada para mi Muerte”, clássico do tango contemporâneo, composta em 1968. Nos últimos 40 anos de sua longa vida (morreu anteontem, aos 81) viveu num quarto do refinado e tradicional hotel Alvear, no centro do que fora a Buenos Aires boêmia que imortalizou em suas letras.
Foi-se, como canta a canção, “tangamente”. Em suas últimas aparições, vestia-se como naquele tempo, terno ajustado, lenço no bolso, bigodão bem afeitado. Numa cidade que muda rapidamente, que ganha novos bairros da moda longe da esquina entre Florida e Lavalle, que vem destruindo casarões de suas esquinas mais famosas, que troca o churrasco pelo sushi e atrações “gourmet”, e levanta torres onde antes havia belos teatros, Ferrer representava uma lembrança de um tempo romântico localizado no passado. Mas, muitos mais do que isso, o tangueiro encarnou até o fim de seus dias a continuidade do espírito notívago e fatalista que todo portenho carrega consigo em qualquer época que seja.
Ferrer nasceu em Montevidéu, em 1933, mas mudou-se para a capital argentina nos anos 60. Não gostava da disputa entre argentinos e uruguaios sobre a origem do tango, que até hoje disputam onde teria nascido Carlos Gardel (1890-1935). Dizia que as duas cidades eram “a mesma, divididas pelo rio”, e defendia que o tango portenho não abandonasse sua raiz africana, ancorada no candombe. O tango-canção, porém, foi sua especialidade, e Ferrer entrou para a história ao associar-se com Astor Piazzolla (1921-1992). Para ele, compôs as letras de “Chiquilín de Bachín”, “Balada para mi Muerte” (veja abaixo, na histórica interpretação da italiana Mina) e “Balada para un Loco” (acima, com Amelita Baltar, uma das primeiras a interpretar a canção, nos anos 60).
“Balada para un Loco” acabou se transformando numa espécie de hino da Buenos Aires boêmia. Conta a história de um sujeito que desce pela rua Arenales pensando na amada até que vê sair detrás de uma árvore ele mesmo. A letra mistura lunfardo com o castelhano porteño típico: “ya sé que estoy piantao, piantao, piantao… No ves que va la luna rodando por Callao”. “Piantao”, em lunfardo, significa “louco”.
O artista ainda comporia mais de 200 canções, e publicaria livros de poemas e pequenas óperas. Ontem, os jornais argentinos e uruguaios publicaram longos e elogiosos obituários, passando por cima da disputa sobre de que lado pertencia de verdade o poeta.
A cantora Amelita Baltar disse que neste dia “esse rio marrom se vestiu de negro, porque o luto, como Horacio, é das duas margens. Se foi o maior que teve o Rio da Prata nos últimos quarenta anos, o maior poeta do tango, o que realizou uma ruptura e inaugurou uma linguagem que as pessoas demoraram a entender porque se tratava de uma simbologia nunca escutada.”