“Há um sentimento de culpa generalizado no México”
As ruas da Cidade do México estão vibrando novamente, de insatisfação, de raiva, de vontade de mudar o que não anda bem. Desde o último dia 26 de setembro, quando 43 estudantes desapareceram no Estado de Guerrero, provavelmente mortos numa ação conjunta entre polícia e narcotráfico, os habitantes do chamado D.F. saem em praça pública para marchar e pedir Justiça, sempre com cartazes criativos e gritos de guerra originais, seu eco reverberando nas demais grandes cidades do país. O que faz dessas manifestações algo tão particular e potente são os antecedentes progressistas dessa megalópole, nascida no século 14 e testemunha de encontros e choques culturais e históricos, aberta aos estrangeiros e catalisador de ideias que vêm de fora. Pois, neste momento de tensão no ar e gritos nas ruas, alguns lançamentos têm feito a cidade olhar para seu próprio passado e, a partir daí, pensar o futuro do México.
Um deles certamente é “Tengo que Morir Todas las Noches”, do jornalista Guillermo Osorno, que passou os anos da primeira juventude numa Cidade do México asfixiante, a dos anos 80, de autoritarismo político, conservadorismo nas atitudes, degradação do projeto do Partido Revolucionário Institucional, muita poluição nos ares e, para coroar, um terrível terremoto no meio, que deixou cerca de 10 mil mortos. O título, que se refere a essa sensação de fatalidade constante e diária, evoca também o particular envolvimento que os mexicanos têm com a morte. No livro, Osorno conta o período através da história do bar El Nueve, ponto de encontro da cultura underground e alternativa em plena Zona Rosa da Cidade do México.
Conversei com Osorno em Guadalajara, durante a feira literária em que apresentou sua obra. Leia abaixo alguns trechos, em que falamos do livro, da agitação na Cidade do México com a tragédia em Ayotzinapa e de jornalismo _Osorno foi, até princípios do ano, editor da revista “Gatopardo”.
Folha – O que conta “Tengo que Morir Todas las Noches”?
Guillermo Osorno – Num nível mais básico, a história de Henri Donnadieu, um francês que chegou fugido da Nova Caledônia supostamente por um fraude imobiliário, mas também por razões políticas, porque ele financiava um partido independentista de lá. Veio ao México atrás de um namorado, os dois se tornam sócios e eles fundam El Nueve. Isso foi no final dos anos 70, e o bar se estabelece rápido. Logo, se transforma em foco cultural, eles se juntam a donos de uma revista cultural, e passam a abrir as portas para o rock, o pop e novas manifestações artísticas.
Folha – Diz-se que o México viveu os anos 70 uma década depois, concorda?
Osorno – Sim, por conta do regime muito fechado do PRI nos anos 70, a contracultura apenas frutificou aqui nos anos 80, aí veio tudo junto, a indústria cultural, o cinema, e no El Nueve víamos uma produção contemporânea que não era exibida no circuito comercial. Até o fim dos 70, os shows de rock, as festas, quando ocorriam, tinham de ser fora da cidade. Os anos 70 correspondem a um inverno autoritário, e nos 80 PRI se abalou tanto por crises internas, que seu punho autoritário se arrefeceu.
A história do clube ajuda a explicar a vida cultural do México na época, mostravam-se os primeiros sinais de decadência do PRI, os de uma decadência econômica de toda a América Latina, depois o terremoto, e a sensação ainda mais constante de que a vida se acaba, e poderia acabar a cada dia, era preciso apressá-la.
Folha – Também conta aí a história da sua geração, não é?
Osorno – Sim, a de gente nascida nos anos 60, mas que até pouco tempo atrás não tínhamos uma época propriamente dita. Só agora parece que reconhecemos coisas criativas e boas produzidas então. Os 80 foram uma década muito potente. No México, surgiram no cinema os irmãos Cuarón, Iñarritú, na música, o Cafe Tacvba, nas artes plásticas, Gabriel Orozco, todos éramos jovens então, e não tínhamos um relato. Para minha geração, o massacre de Tlatelolco (repressão a estudantes, em 1968) não era uma referência, porque éramos muito pequenos ou ainda não havíamos nascido. Agora há um relato dos anos 80. E os jovens hoje se referem a ele, mais ou menos como nós fazíamos com os anos 60, sem tê-los vivido, mas como um marco, um divisor de águas.
Folha – Como vê a comoção pelos desaparecidos de Ayotzinapa, na Cidade do México?
Osorno – É muito difícil saber em que vai desembocar isso. Mas há duas coisas que estão ocorrendo agora e que eu não havia visto. Uma é a resposta do setor cultural. Pela primeira vez vejo os artistas muito mobilizados. Há uns anos atrás, quando o poeta Javier Sicília (que teve um filho morto pelo narcotráfico) encabeçou uma série de protestos, a adesão não foi tão massiva como agora. Vejo uma necessidade muito mais urgente dos intelectuais de dar voz a esse protesto. Em segundo lugar, percebo um sentimento de culpa na classe média. As pessoas não estão mais cômodas, num evento como esse, ou indo a restaurantes e festas ou levando sua vida normal. Agora se lê o Pacto pelo México (acordo entre partidos opositores, armado pelo presidente Enrique Peña Nieto no começo de sua gestão), não como uma forma de aprovar leis positivas para o país, mas como um pacto de cumplicidade. É como se toda a classe política tivesse sido manchada pelo tema de Ayotzinapa, não só a direita ou a esquerda.
Folha – Está otimista quanto ao futuro próximo?
Osorno – Não sei, penso que a corrupção está mais evidente e isso é bom. Ao mesmo tempo, vem uma sensação de cansaço. Nos damos conta de que esse PRI não é o “novo PRI”, como haviam anunciado na campanha. É o mesmo PRI corrompido de seus últimos tempos no poder (o partido dominou a política mexicana por 70 anos). Agora, Peña Nieto conta com as festas de fim-de-ano para apaziguar as temperaturas, e esses dias declarou que a tragédia tinha de ser “superada”. Tenho a sensação de que isso inflamará as pessoas ainda mais.