“Cada modo de encarar o passado tem um custo”
De uns anos para cá, a Feira Internacional do Livro de Guadalajara, no México, passou a ser também um fórum de jornalismo e espaço de encontro de cronistas latino-americanos. O evento, antes quase que exclusivamente literário, tem aberto cada vez mais espaço a lançamentos que tentam explicar a realidade a história recente do continente. Um dos representantes do gênero, neste ano, foi o argentino radicado nos EUA Diego Fonseca, 44, autor de “Hamsters” e organizador do recém-lançado livro de ensaios sobre as ditaduras na região (“Crecer a Golpes”), que reúne artigos de Jon Lee Anderson (EUA), Carlos Dada (El Salvador), Mario Magalhães (Brasil), Patricio Fernandez (Chile), Francisco Goldman (México), entre outros.
Abaixo, trechos de um bate-papo com o autor, sobre jornalismo, ditaduras e política atual. Fonseca é um dos editores da peruana “Etiqueta Negra” e colabora para vários meios da região, como a “Malpensante” (Colômbia), a “Gatopardo” (México) e outras.
Folha – Por que propor a discussão sobre os 40 anos do golpe no Chile (1973) desde uma perspectiva regional?
Diego Fonseca – Eu cresci num povoado na pampa argentina, de cerca de 10 mil habitantes. O golpe chileno aconteceu quando eu tinha três anos, meu pai era militante de esquerda, da União Cívica Radical Intransigente, e ficamos sabendo do ataque ao palácio de la Moneda pelo rádio. Gerou uma grande revolta. Então ele e seu grupo resolvem fazer uma passeata em apoio ao regime derrubado, em repúdio à morte de Salvador Allende, mas, como disse, aquele era um lugar muito pequeno. Tomo meu exemplo particular para falar do impacto que teve em toda região. E comparo com os dias de hoje, a queda da experiência socialista chilena com o que temos agora, tentativas progressistas falidas e governos pós-conservadores. No fim, meu pai e seus amigos nunca fizeram a marcha, mas continuaram se encontrando todos os sábados para tomar uísque e declarar amor à Revolução.
Folha – Você acha muito generalizante falar em ciclos, ou crê que o livro demonstra que havia mais pontos em comum entre os países latino-americanos nos anos 70 do que hoje?
Fonseca – Naquele tempo, demorava muito tempo para conseguir alguma informação. Notícias de golpes chegavam dias depois de ocorridos. Portanto, a tentativa de censura por parte dos governos era mais eficiente. Agora, a tecnologia contribui para tornar mais transparentes os processos democráticos. Em alguma medida esse intercambio de informação da atualidade recriou um olhar romântico da união latino-americana. Mas na prática não acho que dê para falar de irmandade do continente, porque cada país é um, uma cultura política, uma trajetória. Sim, encontram-se semelhanças, mas não é tudo. Só para ficar num exemplo, tomemos El Salvador e Guatemala, vizinhos, capitais muito próximas. Na Guatemala, o ex-ditador Ríos Montt está sendo julgado por crimes contra a humanidade, enquanto em El Salvador, temos uma sociedade corrupta, de instituições frágeis e cheia de casos de corrupção sem serem investigados. Brasil e Argentina também têm relações distintas com o passado ditatorial. Sim, se pode compartilhar certas ideias e leituras, mas não creio que seja possível uma linha de interpretação única para o continente.
Folha – Como vê os julgamentos de ex-agentes da repressão na Argentina hoje, depois do fim dos indultos e da retomada dos processos, durante o kirchnerismo?
Fonseca – Na Argentina está havendo um processo de ressignificação dos atos dos protagonistas. Quarenta anos depois, surgiu uma nova discussão sobre direitos humanos. Quando eu era adolescente, protestei muito contra as leis de Obediência Devida e Ponto Final (promulgadas por Raúl Alfonsín para acalmar ânimos políticos e militares, após amplo processo de julgamento dos crimes dos anos 70). Mas hoje, o tempo me dá persepctiva para entender que talvez não existisse outro modo de atingir um consenso nacional e seguir adiante, os militares ainda estavam armados, a possibilidade de insurgência e novo golpe não era distante. Hoje vejo Alfonsín como um valente.
Folha – Mas está contra os atuais julgamentos? [em 2003, ao assumir, Néstor Kirchner (1950-2010) deu início a uma política de levar à Justiça casos de crimes considerados de lesa-humanidade, ainda em curso]? O que acha de o Brasil estar apresentando apenas agora um relatório dos crimes da ditadura, por meio da Comissão da Verdade?
Fonseca – Não, não estou contra, acho bom que continuem, mas penso que deveria ser algo concentrado apenas à esfera da Justiça, e não levado adiante por políticos, nem por eles usado como propaganda, como acontece hoje. Creio que a Argentina não tem capacidade de sustentar por completo seu processo democrático por conta da intensa polarização do país. Ali, um debate político vira uma guerra entre inimigos. E cada vez que isso acontece, descemos um degrau mais no processo de fragilização das nossas instituições. Temos a tradição de fazer da política um Boca x River. Parece que o Brasil articula melhor o consenso, mas isso toma tempo, sei que tem seus custos. Mas cada modo de encarar o passado tem um custo. Celebro que o Brasil leve tempo, por outro lado, tem 20 anos de estabilidade política e econômica. Alfonsín resolveu a parte militar, mas economicamente foi um horror [houve hiper-inflação, e ele teve de abandonar o cargo mais cedo que o programado].
Folha – Mujica foi muito criticado por não apoiar suficientemente os processos, ele se defende dizendo que não é revanchista.
Fonseca – A resposta está aí, se o criticam por isso, é porque querem revanche, e isso não é positivo. Não se pode fazer justiça como ato político. Se fizer isso, abre a porta para a revanche. Posição de Mujica é inteligente, em algum momento é preciso virar a página, cristalizar o passado e viver dento dele não é bom, em algum ponto temos que esquecê-lo. Na Argentina esse processo é muito complicado e divide muito as opiniões.