“Dom Quixote” magrinho renova polêmica sobre adaptação de clássicos

Sylvia Colombo

Enquanto no Brasil incomodou tanto que se fizesse uma adaptação facilitada de Machado de Assis para jovens, no mundo hispânico nada menos que o “Dom Quixote” ganha agora uma versão mais enxuta, com substituição de palavras antiquadas, corte de subtramas e divagações e reordenação dos parágrafos. Heresia? Não é o que acha a Real Academia Española, uma vez que é a própria prestigiosa instituição _nascida em 1713 pelas mãos de um grupo de nobres literatos e apadrinhada pelo rei Felipe 5_ quem preparou a edição.

O escritor espanhol Artur Pérez-Reverte, que lançou o "Quixote" em Guadalajara
O escritor espanhol Artur Pérez-Reverte, que lançou o “Quixote” em Guadalajara (Foto: AP)

Esse “Dom Quixote” magrinho, de 586 páginas (contra quase mil do original) foi um dos hits da Feira do Livro de Guadalajara, o maior evento do mercado literário em língua hispânica, que termina hoje nesta cidade mexicana. Nas últimas três semanas, uma fila constante formou-se no canto esquerdo do stand da editora Santillana: estudantes, professores e gente curiosa pela obra mesmo, mas que nunca havia tido coragem ou tempo para encará-la. Além do formato mais amigável e da edição bem cuidada, o volume sai com preço também amigo: US$ 15. O texto foi reescrito por um dos mais importantes escritores espanhóis da atualidade, Arturo Pérez-Reverte, 63, autor das “Aventuras do Capitão Alatriste”. A edição resgata ilustrações de diversos artistas usadas nas primeiras versões, incluindo algumas de Francisco de Goya (1746-1828).

A ideia é chegar ao público jovem e popularizar esse título clássico, parte de uma estratégia mais ampla das editoras da Espanha em criar novos leitores na América Latina, por conta da crise que enxugou o mercado na Europa e pelo crescente potencial do Novo Mundo, com o aumento do consumo por parte da classe média. “O ‘Quixote’ é um livro concebido como uma cadeia de episódios protagonizados por um par de personagens caminhantes, de imagem inconfundível, fala saborosa e sorte desventurada”, diz o texto da Academia, que serve de prólogo à edição.

Finalizado em 1605, por Miguel de Cervantes (1547-1616), “a comprida extensão das duas partes do ‘Quixote’, acrescentada pela interpolação de narrações secundárias, assim como a riqueza de seu léxico e amplo jogo erudito e retórico de que faz uso o autor, frequentemente em chave irônica, podem converter-se porém, em barreiras que dificultam a leitura dos mais jovens”, conclui. Desde 1920, o “Quixote” é leitura obrigatória nas escolas da Espanha.

Presente em Guadalajara para lançar o volume, Pérez-Reverte disse: “livros como o ‘Quixote’, nas mãoes de bons professores, permitem educar os que levam as tochas da compaixão, solidariedade, coragem, honradez, e isso pode iluminar o futuro.”

A adaptação também foi alvo de de críticas, mas nem de longe parecidas às que se fizeram quando a escritora Patrícia Secco anunciou que lançaria uma versão facilitada para jovens de “O Alienista”, de Machado de Assis. Já havia, na Espanha, uma série de versões de “Dom Quixote” para crianças, mas nenhuma obra tinha sido elaborada, como agora, pela Real Academia. No ano que vem, quando o texto completa 410 anos, uma nova edição da obra original também virá à tona.

Pérez-Reverte, que também é membro da Real Academia, esteve no lançamento do novo dicionário de espanhol realizado na feira. O novo volume traz atualizações e integra mais “americanismos” ao léxico já consagrado. O próprio autor disse ser contra a existência de uma seção com esse nome, e que tanto espanhóis como mexicanos e outros hispano-hablantes são donos da língua e que, com o tempo, essa distinção já não será mais feita. “Estamos falando de um mundo de 500 milhões de pessoas falando essa língua, que até nos EUA estará amplamente difundida. Será praticamente todo um continente, enquanto a população apenas da Espanha é muito mais reduzida”, completou.

Estátua de Dom Quixote, em Alcalá de Henares, na Espanha
Estátua de Dom Quixote, em Alcalá de Henares, na Espanha