Guadalajara festeja novas penas da Argentina

Sylvia Colombo

Em declaração recente publicada em revista mexicana, o jovem escritor argentino Patrício Pron, 39, ao ser perguntado sobre as atuais correntes literárias de seu país, disse: “Em dezembro de 2001, uma série de acontecimentos fez com que pensássemos que o país que habitualmente chamamos de Argentina chegava a seu fim.”

O rosarino, autor de “El Espíritu de Mis Padres Sigue Subiendo en la Lluvia”, referia-se à terrível crise política-econômica que abalou o país-vizinho naquele ano, causando a queda do governo, o “corralito”, a desvalorização da moeda e o calote da dívida, um pesadelo que empobreceu a Argentina, isolando-as de investidores estrangeiros por muito tempo. Como costuma acontecer, períodos de crise são propícios à arte, e neste caso tornou-se tarefa de escritores, cineastas e artistas questionar a identidade nacional, explicar culturalmente o contexto histórico que deu origem ao cataclisma, menos de vinte anos depois de terminada a ditadura militar (1976-1985).

No cinema, essa reflexão levou a um verdadeiro “boom” internacional da produção local: filmes de baixo orçamento, excelente roteiro (devido à ótima formação educacional daquela geração) e tramas focadas na intimidade de famílias, casais e amigos afetados pelo terremoto. Na literatura, uma busca parecida teve início. Porém, como nesse gênero tudo costuma ser mais lento, é apenas agora, quando a Argentina volta a abrir-se mais para o mundo novamente, que sua nova geração de autores ganha projeção, conquista prêmios, estabelece diálogos com outras literaturas, e é traduzida fora em maior escala.

Esse é o ambiente aqui na Feira do Livro de Guadalajara (FIL), no México, onde chego hoje e já me sinto perdida, como costuma acontecer, entre apresentações de 600 escritores, de 1.932 editoras, pertencentes a 43 países. Trata-se do maior evento literário da língua de Cervantes, e neste ano tem como homenageada a produção de um país que deu ao mundo nada menos que Julio Cortázar, Jorge Luiz Borges, Manuel Mujica Lainez, Leopoldo Lugones, José Hernandez, Domingo Faustino Sarmiento, Ricardo Piglia, Antonio Di Benedetto, Rodolfo Walsh, Roberto Arlt e Juan José Saer _só para ficar em alguns nomes do primeiro escalão.

O escritor argentino Manuel Mujica Lainez
O escritor argentino Manuel Mujica Lainez

Antes de mais nada, é curioso o encontro da irônica melancolia platense com o comportamento algo taciturno, formal e doce dos tapatíes _como são conhecidos os habitantes do Estado de Jalisco, onde se localiza Guadalajara. A solenidade das homenagens a escritores mortos, muito ao estilo mexicano, como as realizadas a Carlos Fuentes e Octavio Paz, não combina com a vívida e crítica necrofilia que os argentinos dispensam a seus ícones já falecidos.

O curioso, na chegada aqui, foi reparar em como se tenta, do lado de fora, entrar na literatura argentina. Nos últimos dias, mais de uma publicação especializada usou Borges como referência. A ideia era perguntar se a literatura de hoje dialoga com sua obra. A pergunta, na verdade, já havia sido respondida por Alan Pauls, em seu livro “El Factor Borges”, bem lembrado em artigo de Leila Guerriero, no qual o autor de “O Passado” afirma que nenhum autor da atualidade tenta fazer algo parecido ao que fez o mais importante autor argentino do século 20. Mais, parecem ter ouvido o conselho de Witold Gombrowicz quando deixou o porto de Buenos Aires, em 1963, respondendo à pergunta sobre que caminho deveriam seguir os novos escritores. O dramaturgo polonês, reza a lenda, teria gritado da embarcação: “Matem a Borges!”.

Na verdade, olhando com mais distância histórica, não há como não pensar que existe, sim, um diálogo com o passado, que talvez o que mais os escritores argentinos façam é conversar com esse plano, mas trata-se de um passado anterior, o do país-nascente no século 19. Historiadores argentinos, como o falecido recentemente Tulio Halperín Donghi (“Una Nación para el Desierto Argentino”), e estrangeiros costumam apontar a particularidade da história argentina com relação a outros países do continente em sua investida desde o porto de Buenos Aires, europeu e cosmopolita, ao sul “selvagem” e “desabitado” do país (na verdade habitado, por índios ranqueles, araucanos e outras etnias). Diz-se que o movimento, que supunha levar a “razão” a territórios “bárbaros”, pode ser comparado apenas com a expansão dos norte-americanos para o oeste de seu território.

Tal empresa, para os argentinos, transformou-se num evento mítico. A razão iluminista europeia que guiara a Independência encontrava-se com a sabedoria e a violência nativas. Desse movimento, e de suas consequências, muitas delas ainda em aberto, nasceu a Argentina. As obras que se referem a isso de forma mais direta são o “Martín Fierro” (1872), de José Hernandez, que conta a história de um soldado que deserda no meio dessa empreitada, e o ensaio literário-político “Facundo” (1845), que romantiza a vida de um caudilho ao mesmo tempo que estuda seu contexto geográfico. Entre os autores contemporâneos que mais conversa com essa tradição, está Ricardo Piglia, presente à FIL para lançar a coletânea de seus diários, e que evoca os pensadores românticos daquele tempo em “Respiração Artificial” (1980) e mostra o conflito ainda latente até em seus enredos mais policiais, como “Alvo Noturno” (2010), ambos lançados aqui pela Companhia das Letras.

Nos últimos tempos, tem havido um resgate de autores que ficaram à sombra de Borges e Cortázar. As livrarias portenhas exibem reedições e textos raros ou inéditos de autores como o montonero Rodolfo Walsh, transformado em autor oficial do kirchnerismo, Roberto Arlt, que expõe um submundo de Buenos Aires, e Antonio Di Benedetto, nascido em Mendoza e perseguido também durante a ditadura.

Mais citados como influências diretas da nova geração estão referências mais recentes, como Juan José Saer, rosarino que viveu muitos anos em Paris, mas que talvez tenha os melhores romances sobre a Conquista (“O Enteado”) e o regime militar (“Nadie, Nada, Nunca”) e Cesar Aira, que para muitos segue, de alguma forma, a linha cortazariana.

A ditadura (1976-1983) segue causando novas reflexões, agora menos românticas e dicotômicas, nas mãos de Pauls, Martin Kohan, Martín Caparrós e Leopoldo Brizuela, todos presentes à FIL.

Além da questão temática, o que explica a profusão de autores argentinos novos editados em todo canto está, justamente, a própria crise de 2001. Uma de suas consequências é que o país se isolou econômicamente, o que fez com que praticamente se fechassem as fronteiras para livros importados e levou à crise de mega-editoras ou filiais de grandes selos europeus instalados ali. Com edições baratas, tiragem reduzida, mas mesmo expertise e preparo editorial dos que trabalharam sempre na área, as pequenas editoras tiveram um florescimento. Mesclando o catálogo com traduções novas de obras menos óbvias estrangeiras, dando um aspecto de raridade aos lançamentos, e apostando em nomes novos, as pequenas editoras vivem um período de expansão. Selos como Adriana Hidalgo, Eterna Cadência, La Bestia Equilátera, Bajo la Luna, Mardulce viraram meio de divulgação de novos escritores e, pela qualidade literária e editorial, conquistam compradores fora. Sem que saiam de cena Cortázar e Borges, entram no cenário Selva Amada, Pablo Katchadjian e Fabian Casas, entre dezenas de outros.

Leia no blog, nos próximos dias, cobertura deste evento.