Tulio Halperín Donghi (1926-2014)
O pescoço curto fazia com que a cabeça grande de Tulio Halperín Donghi parecesse apenas depositada entre seus longos ombros. A fala pausada e a escolha meticulosa das palavras eram cortadas por piadas ou comentários irônicos nem sempre fáceis de distinguir de seu discurso “sério”. As mãos trêmulas só se levantavam quando queria marcar especificamente um ponto do discurso. Assim era, pessoalmente, o mais importante historiador da Argentina do século 19, morto na semana passada, aos 88 anos. Dele vieram inspiração e referências para minhas pesquisas sobre o período. Aqui, uma entrevista que fiz com ele em 2005, sobre os projetos nacionais contemporâneos de Brasil e Argentina: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2407200516.htm.
Halperín Donghi nasceu em Buenos Aires, em 1926, e partiu para o exílio quarenta anos depois, em 1966, após a Noche de los Bastones Largos, uma repressão universitária ocorrida durante a ditadura do general Juan Carlos Onganía (1966-1970). Em 1971, passou a dar aulas na universidade de Berkeley, na Califórnia, e aí se radicaria até seus últimos dias. Seu tema principal de estudos, porém, seguiu sendo a Argentina, protagonista de livros como “Revolución y Guerra”, “Argentina en el Callejón”e “História da América Latina” (o único lançado em português, pela Paz & Terra).
Seu texto mais importante é “Una Nación para el Desierto Argentino”, no qual investiga as utopias políticas, projetos nacionais e planos de desenvolvimento da chamada “Generación de 1837”. Esse grupo de intelectuais, fortemente inspirados no romantismo e nos ideais da Revolução Francesa opunha-se, naqueles anos, ao governo autoritário de Juan Manuel de Rosas. Aspiravam, para a Argentina, os modelos europeu e norte-americano de leis e instituições republicanas. Seus principais referentes foram Juan Bautista Alberdi [1810-1884], principal formulador da Constituição Argentina de 1853, Domingo Faustino Sarmiento [1811-1888], autor do clássico do ensaio social latino-americano “Facundo” e presidente da Argentina entre 1868 e 1874, e Bartolomé Mitre [1821-1906], militar e presidente da Argentina entre 1862 e 1868.
Halperín Donghi defendia a ideia de uma excepcionalidade no caso argentino, não por achar que o país teve um desenvolvimento político melhor desenhado do que o de outros países da região, mas porque via nas condições do contexto a preparação perfeita para a implementação de ideias. Em 1880, encerra-se um ciclo de guerras civis no país e este experimenta um rápido e vigoroso bom desempenho econômico. Os governos, hoje chamados “liberais”, de então se sentem fortalecidos e de fato executam muito do que havia sido desenhado pela Generación de 1837. Entre as consequências positivas estão o reforço das instituições e a entrada da Argentina como jogador importante no sistema econômico internacional. A negativa foi o avanço realizado pelas tropas do Estado ao sul do país na chamada Campanha do Deserto, cujo objetivo era levar a “civilização” aos territórios onde reinava a “barbárie”. Em termos concretos, resultou em alta matança das populações indígenas em prol de desenhar o mapa das fronteiras do país e instituir, nos rincões, os marcos da república nascente.
Como poucos, Halperín Donghi relatou esse processo de um ponto de vista histórico e sociológico. A partir daí, interpretou também as escolhas de projetos de nação feitas por peronistas, radicais, liberais e a esquerda ao longo do século 20. Se definia como um pessimista, e vinha descontente nos últimos tempos com a Argentina. Incomodava-o o uso feito das figuras históricas por líderes políticos do presente, e o revisionismo da própria academia, que demonizava os tempos liberais da história recente argentina, heroicizando o período nacionalista e mais autoritário do país.
Seu livro de memórias, “Son Memórias”, lançado lá pela Siglo 21, traz um retrato tocante de seus anos de formação, em Buenos Aires, e de como foi amadurecer sua visão de país a partir do estrangeiro. Halperín Donghi escreveria mais um livro sobre o século 19, “El Enigma de Belgrano”, no qual desconstrói a imagem heróica do prócer, reforçada nos anos Kirchner.
Na entrevista acima mencionada, o historiador disse que não achava correto usar a palavra “crise” de modo indiscriminado para designar questões pontuais das democracias latino-americanas. Não as via em risco e acreditava que usar a palavra era reviver as justificativas dos militares, quando estes se apresentaram como solução à instabilidade política dos anos 60/70.