Tlatelolco, 1968 – Ayotzinapa, 2014

Sylvia Colombo
Estudantes tomam a Praça das Três Culturas, em outubro de 1968 (Foto: Reuters)
Estudantes tomam a Praça das Três Culturas, em outubro de 1968 (Foto: Reuters)

TLATELOLCO, 1968

“São muitos. Vêm a pé, vêm rindo. Baixaram por Melchor Ocampo, Paseo La Reforma, Juárez, Cinco de Mayo, rapazes e moças estudantes que vão de braços dados à manifestação com a mesma alegria com a qual há apenas uns dias iam a uma festa; jovens despreocupados que não sabem que amanhã, dentro de dois dias, dentro de quatro, estarão ali expostos debaixo da chuva, depois de uma festa onde o centro do tiro ao alvo serão eles.”

Assim começa o livro-referência sobre o Massacre de Tlatelolco, da veterana escritora mexicana Elena Poniatowska (Ediciones Era, jamais traduzido ao português). A obra é o principal registro do que aconteceu na terrível noite do dia 2 de outubro de 1968, na Cidade do México, ao coletar relatos de soldados, estudantes, passantes, historiadores e moradores do local. O livro permite que o leitor faça a amarração da história em sua cabeça e que colabore na ideia de reconstruir o que aconteceu naquela noite, de maneira múltipla e ponderada.

De um modo resumido, o que ocorreu naquele dia, foi que o governo enviou tanques e tropas para cercar a praça durante a manifestação, que não era a primeira a ser organizada, criticando o presidente Díaz Ordaz e sua gestão. Tudo havia começado com os protestos de estudantes das escolas preparatórias por melhor educação, mas logo as bandeiras passaram a incluir uma inquietação por um México que se modernizava, preparava-se para sediar dali a alguns meses uma Olimpíada, e estava sendo governado de modo pouco transparente, na visão dos que, agora em maior número, saíram às ruas. Também reclamava-se que os meios de comunicação mais importantes, principalmente a Televisa, atuava como canal oficial do regime. Antes do evento em Tlatelolco, outras manifestações haviam sido contidas, levando jovens a serem presos sem acusação formal. Díaz Ordaz falava na “chegada a um limite de paciência”. Pois, naquele 2 de outubro, sua paciência, de fato, acabou.

Pelo que se ficou sabendo por meio de documentos conhecidos apenas depois da morte de Díaz Ordaz, em 1979, a ideia era fazer crer que os estudantes haviam aberto fogo primeiro. A Praça das Três Culturas compõe um perfeito anfiteatro, de onde é difícil sair correndo, se for o caso (como o foi). Entre as ruínas pré-colombianas, a igreja colonial e imensos prédios de blocos fechados, era fácil deixar um grupo grande, de mais de 10 mil pessoas, encurralado. O fogo começou do alto do prédio onde os próprios estudantes discursavam. A explicação oficial era de que eram eles mesmos, os estudantes, que haviam sido responsáveis pelos primeiros tiros. Evidências conhecidas depois da morte do presidente deram conta de que os atiradores colocados ali pertenciam ao Exército. O pânico armou-se imediatamente. As imagens de vídeo, que mostram a correria, gente tropeçando ou desabando morta devido a tiros, que vinham de cima ou debaixo, é de apertar o coração. Sobreviventes contam ter ficado um tempo tentando desembaraçar-se de corpos que caíram sobre eles. No documentário abaixo, o professor Fausto Trejo conta como foi salvo por um jovem estudante que se interpôs entre ele e um atirador, levando uma bala no pescoço em seu lugar. “Aqui ele caiu, foi o pior dia da minha vida”, diz Trejo, apontando o local aos prantos, nos dias de hoje.

Documentos do próprio Exército revelam que a situação saiu do controle, os que organizavam a ação dos altos dos prédios perderam a comunicação dos que estavam embaixo, que ao mesmo tempo agachavam-se para proteger-se das balas dos próprios colegas. A correria assustou todo mundo, e os estudantes viravam o alvo, despencando sem dó sobre as pedras do antigo monumento asteca. O saldo total de mortos da terrível jornada nunca ficou esclarecido completamente, mas teria sido entre 100 e algumas centenas. Há familiares que até hoje, ainda reclamam corpos. O Exército contesta, dizendo que o número de vítimas civis é muito menor.

Soldados rendem manifestantes em Tlatelolco (Foto: Divulgação)
Soldados rendem manifestantes em Tlatelolco (Foto: Divulgação)

Ayotzinapa, 2014

É possível comparar Tlatelolco com os recentes acontecimentos em Ayotzinapa, no estado de Guerrero, no interior do país? Em alguns sentidos, sim. Primeiro, no que diz respeito ao uso da força de modo desigual entre o Estado e os manifestantes, também aqui jovens estudantes. Em segundo, por conta do triste saldo de mortos, até segunda ordem inocentes, que nada mais faziam do que protestar contra abusos do poder local. O saldo da tragédia atual é de 43 estudantes mortos, mas que deixam a sensação de tratarem-se de uma terrível ponta de um iceberg. Até chegarem no que agora parecem ser (falta confirmação) de fato os restos calcinados dos jovens, outras fossas foram encontradas, também com dezenas de corpos de desconhecidos. Em cada uma delas, portanto, outra história a ser contada. O que aconteceu em Ayotzinapa, por ora, tampouco é muito claro. Aparentemente, as autoridades locais pediram que a polícia retirasse os jovens de um local onde planejavam manifestar-se e entregou-os a um grupo de narcos atuantes na área. Eles teriam assassinado os estudantes, muitos com menos ou pouco mais de 20 anos. Como explicar uma solução tão radical assim?

Na verdade, no contexto em que vivem Estados como Guerrero, Sinaloa, Michoacán, Sonora e Coahuila tal situação encontra terreno fácil para desenvolver-se. Trata-se de estados que receberam o quinhão da distribuição da droga vinda da América do Sul, com a missão de levá-la à América do Norte. Se nos anos 80, os reis da droga eram os chefões que a produziam, como Pablo Escobar e o Cartel de Cali, ambos colombianos, com o tempo, aquele que domina a distribuição da mesma tornou-se mais poderoso. Os canais abertos pelos cartéis mexicanos não são apenas espaço de bandoleiros e aventureiros, mas sim uma poderosa rede de empresários, soldados do exército, funcionários públicos regionais e agentes dos serviços aduaneiros norte-americanos. Essa imensa cadeia atua também na extorsão de pequenos e médios produtores e comerciantes e no controle da passagem de produtos aos portos e vias de acesso às grandes cidades. Apenas compreendendo a imensa teia de corrupção que se armou longe dos olhos do governo federal é possível ter um quadro não apenas de mocinhos e bandidos no interior do México.

O governo anterior, do conservador PAN, apostou num combate bélico contra o narcotráfico. Em linhas gerais, provocou mais violência _os números oficiais hoje superam os 60 mil mortos e mais de 80 mil desaparecidos_, não fez desaparecerem as rotas, e deu brecha para que se armassem esses núcleos regionais de poder corrupto em que o dinheiro do narco regula as relações. Os grandes assassinatos coletivos que nos apavoram quando vistos de longe, nos noticiários _dezenas de decapitados, homens sem os genitais, civis com mensagens escritas com sangue nos corpos nus_ são nada menos que sinalizações, de um cartel a outro, ou ao governador local, de que determinado grupo está atuando na área.

O atual governo aposta numa linha diferente, além de não baixar tanto a guarda da frente bélica, vai fazendo acordos com os cartéis, apenas pedindo que matem menos e de modo mais discreto. O mesmo acordo é feito também com grandes jornais e TVs, para que mostrem menos a violência. A população das grandes cidades fica, assim, com a impressão de que a situação melhorou. Até que algo como Ayotzinapa acontece, e tudo vem à tona.

Escola rural de Ayotzinapa (Foto: Telesur)
Escola rural de Ayotzinapa (Foto: Telesur)

Os jovens que perderam a vida no dia 26 de setembro eram alunos de uma escola rural dedicada a formar professores que se deslocam a áreas mais afastadas do Estado para ensinar crianças que não tem como ir a um colégio. Criadas na época da Revolução Mexicana (1910), as escolas rurais obedeceram uma determinação do novo governo revolucionário de estender a alfabetização por todo o país. O México foi um dos pioneiros em projetos de alfabetização em massa da sua imensa população. Essa estrutura, hoje, infelizmente, encontra-se degradada. Com menos apoio do Estado, muitas dessas escolas foram fechadas. As que existem, sobrevivem em más condições, e foram tomadas por bandeiras ideológicas talvez radicais (como mostra a fachada da escola de Ayotzinapa). Ainda assim, sua função para a região é essencial, pois dela depende a alfabetização inicial da maioria das crianças que vivem nessas áreas afastadas.

A questão do narcotráfico e de como o dinheiro da droga corrompeu as administrações regionais, as divisões da polícia e do Exército nos Estados é o grande problema que Enrique Peña Nieto tem a resolver. Se por um lado, o novo PRI no governo está modernizando o país a olhos vistos _ilhas de excelência industrial como em Guanajuato e Queretaro, reforma energética que deve aumentar o PIB em quase 3% em três anos, relação comercial bi-lateral renovada com os EUA, o sucesso da Aliança do Pacífico, são mostras de que o país tem o que comemorar com relação a seu futuro do ponto de vista de avanços materiais. Porém, o problema que arde dentro de casa não é pequeno, e dá a sensação, para quem assiste os noticiários do lado de fora, que parte do país vive uma idade das trevas, muito diferente da toada das grandes cidades industrializadas e cosmopolitas.

Peña Nieto tem um grande desafio por aí, combater a corrupção narco, fortalecer as instituições regionais, reestruturar o sistema educacional primário para as áreas mais carentes e tomar uma posição mais valente com relação à droga, principalmente agora que alguns Estados norte-americanos estão legalizando algumas delas. Não seria o caso de trazer essa discussão também para o México e encerrar esse ciclo de violência e morte de uma vez?