Bolívar, revirando-se no túmulo
Banalizado e distorcido pelo ex-presidente venezuelano Hugo Chávez (1954-2013), o nome do herói da independência de Bolívia, Colômbia, Equador, Panamá, Peru e Venezuela volta a ser invocado de modo equivocado agora no Brasil pós-eleitoral. Para anti-petistas inconformados, “bolivariano” virou adjetivo negativo identificado a alguma terrível ramificação do socialismo. Uma expressão pejorativa, um lugar-comum que demonstra profunda desinformação. Bolívar jamais formulou soluções para as questões brasileiras, tampouco foi referência para as agrupações políticas de esquerda formadas aqui na ex-colônia portuguesa. Uma das razões dessa tremenda confusão, certamente, está no fato de a história da América Latina ter espaço reduzidíssimo em nossos livros escolares, facilitando a caricaturização folclórica de muitos personagens.
Simón José Antonio de la Santísima Trinidad Bolívar y Palacios Ponte y Blanco nasceu em Caracas no distante ano de 1783, e morreu de tuberculose, no também longínquo 1830. Apesar de parecer contraditório em seus escritos e ações, nunca, em sua curta vida (morreu aos 47), o prócer expressou simpatia por vertentes próximas ao socialismo. Mais, em muitas ocasiões, desconfiou da democracia, defendeu cargos hereditários e posicionou-se contra a ampla participação popular na política. Tampouco mostrou-se demasiado preocupado com a injustiça social.
O que parece um paradoxo: ser o libertador de tantos países, mas não necessariamente um defensor de valores republicanos e amplamente democráticos, era coerente com sua formação, biografia e o contexto em que cresceu e se formou. Nascido numa rica família de “criolos” (descendentes europeus nascidos na América), sua educação foi de cunho liberal e militar.
O principal legado positivo de Bolívar não é pequeno: defender a ideia de uma América Latina livre e unida. A formação de um só grande país, ideia um tanto visionária no contexto de guerra e da dissolução do Império Espanhol, encontrou eco em vários líderes políticos ao longo dos dois últimos séculos. Porém, sempre como utopia distante. Curiosamente, nos dias de hoje, parece ver-se parcialmente concretizada na formação de blocos econômicos regionais, como a Alianza del Pacífico (Colômbia, Chile, México e Peru) e o Mercosul (Brasil, Argentina, Venezuela, Paraguai, Uruguai e, muito em breve, Bolívia).
Assim como o general San Martín (1778-1850), Bolívar arriscou a vida em campos de batalha em territórios que não eram os seus de origem, em nome de um ideal que há até pouco tempo atrás parecia vago e irrealizável. Não é pouca coisa. Porém, daí a associá-lo a um comunista radical, não apenas há uma longa distância, como constitui um imenso anacronismo. Para compreender um pouco a história, é preciso chamar as coisas pelo seu nome, respeitando o seu tempo. Generalizações e transposições geram erros e fazem com que os personagens e fatos se prestem à manipulação.
Em seus escritos (aqui uma dica para editores brasileiros, lança-los em português poderia arejar esse debate), Bolívar também se mostrou desgostoso com o que semeou. Chegou a dizer que a “América era ingovernável” e que defender uma revolução aqui era como “arar no mar”. Morreu desgostoso e doente, longe de casa, em Santa Marta, na Colômbia.
Confusões na interpretação de seu legado já foram cometidas antes. Em 2002, um divertidíssimo filme colombiano fez sucesso em festivais na região e na Europa ao satirizar o modo como o personagem transformou-se em lenda. Trata-se de “Bolívar Soy Yo”, de Jorge Ali Triana, cujo link para a versão completa está nesse post. A história se baseia num episódio real, quando o ator Pedro Montoya passou a ser confundido com Bolívar nas ruas da Colômbia depois de interpretá-lo em uma minissérie.
No filme de Triana, o ator Santiago Miranda tem de encarnar Bolívar num programa de TV que apela para o sentimentalismo e tenta mostrar a vida pessoal do libertador _teria tido 38 amantes, ao todo. Revoltado com a banalização do personagem, Miranda abandona as filmagens, caracterizado com as roupas do herói, e começa a vagar por Bogotá em um cavalo branco. Ganha apoio oportunista do presidente, viaja pelo rio Magdalena convencendo a todos de que é o próprio herói e mete-se com a guerrilha.
No meio do delírio, num discurso para líderes da região, o falso Bolívar diz: “Vocês não conhecem o verdadeiro Bolívar. Vocês não fazem política, vocês fazem teatro! Depois de minha morte, meu nome foi utilizado para o pior. Para justificar golpes de Estado, para nomear colégios medíocres e hospitais que não servem para nada, para apadrinhar constituições que não se aplicam e até para legitimizar a barbárie da luta armada.”
Pois, é, Bolívar, se depender da riqueza do debate pós-eleitoral brasileiro, pode seguir revirando-se na tumba.
Imagem de Simon Bolívar reconstruída a partir de telas e relatos de época (Fonte: Reprodução)