Cabrera, universal sem sair do Prata
Existem artistas que vão se tornando cada vez mais geniais e universais quanto mais permanecem atados às suas raízes e à geografia de sua infância. É o caso do uruguaio Fernando Cabrera, 57, nascido em Paso Molino, um dos bairros mais antigos de Montevidéu, e hoje morando na zona do porto, diante do Cerro, local mítico da fundação da capital uruguaia. “Aí imagino que estou em 1726 ou 1810, acompanho o movimento portuário e as mudanças urbanísticas da cidade. O Cerro é a razão de ser do Uruguai”, disse em certa ocasião, ao jornal argentino “Clarín”.
Na última quarta-feira, vi Cabrera tocando seu mais novo disco, “Viva La Patria”, no bar Paullier y Guaná (www.paullieryguaná.com), num charmoso porão de Montevidéu, para um público reduzido e hipnotizado por seu modo de cantar, sempre equilibrando-se e deixando-se cair das melodias. Sua música, que mescla milonga platense com tango argentino, ritmos afro e candombe é uma das coisas mais originais e belas que produziu o cancioneiro do continente no último meio século.
Como sempre no Brasil, para sugerir a meus leitores de que o que Cabrera faz é sensacional, eu teria de listar, aqui, quantos prêmios e festivais ganhou na Europa, mencionar se tocou ou não no Carnegie Hall ou algum lugar do gênero. Para ser realmente considerado bom para os ouvidos brasileiros, em geral, qualquer latino-americano deveria antes passar pelo selo de algum centro do Primeiro Mundo. Não farei isso, não porque Cabrera não tenha se apresentado ou brilhado fora, mas porque creio que vale a pena deixar de lado esse critério e concentrar-me no personagem e sua obra.
Tocando violão e compondo há mais de 50 anos, Cabrera conviveu com a obra de artistas que estão nas origens da música uruguaia contemporânea, especialmente com o mítico Eduardo Mateo (1940-90), e desenvolveu seu estilo dando uma roupagem jazzística à tradição musical da região. Hoje, trata-se de uma espécie de padrinho de uma nova geração de artistas uruguaios talentosos, como Jorge Drexler e Ana Prada. Ouça Cabrera tocando “El Tiempo está después”.
Conversamos uma hora antes do espetáculo, numa noite fresca da primavera de Montevidéu. Reproduzo, aqui, os melhores momentos do papo, que foi da política atual uruguaia à música.
Folha – Como vê a lei da maconha e as dificuldades que enfrenta agora para sua implementação?
Fernando Cabrera – A lei não vem do nada. Lembro quando, no passado, o governo uruguaio resolveu assumir a fabricação de aguardente e grapa, para que as pessoas deixassem de consumir a porcaria que se vendia, feita de segunda mão e sem regulamentação, em condições de higiene precárias. Hoje acontece o mesmo, a marijuana que vem do Paraguai é de péssima qualidade e nociva para a saúde, passa por distintas mãos de traficantes que não estão nada preocupados com o bem-estardos consumidores. A ideia do governo é que se plante com qualidade, que o sistema de venda seja controlado, e que as pessoas se inscrevam em listas e comprem até um certo limite.
Folha – Como se explica a especificidade uruguaia com relação a essas leis de liberdade civil (matrimônio igualitário, aborto, liberação da maconha) aprovadas aqui com mais facilidade com relação ao resto da América Latina?
Cabrera – Temos uma história, um contexto que favorece isso. Quando o presidente José Battle Ordoñez (1856-1929) assumiu, fez aprovarem muitas medidas que colocaram o Uruguai na vanguarda e melhoraram a vida dos trabalhadores. A jornada de oito horas, o apoio à cultura e ao esporte, o aborto, as liberdades civis. São tantas as melhorias sociais, que nos beneficiamos delas até os dias de hoje. Além disso, a separação definitiva de Estado e Igreja, aboliram-se crucifixos das escolas, e ficou claro o limite de atuação de cada um. Foi um governo muito bom, mas que gerou uma contra-ofensiva de setores mais conservadores, o que levou a um golpe de Estado, nos anos 30 _instaurando a ditadura de Gabriel Terra, em 1933.
Já nesta época, havia uma onda fascista pelo mundo, na Europa, na Argentina. E aqui causou um retrocesso. Ainda assim, tivemos avanços sociais que outros países da América Latina não atingiram nunca, pelo menos por enquanto.
Voltando à lei da maconha, aprovo a iniciativa do governo, mas creio que será necessário um tempo de ajuste e de retoques, e também me parece que falta discutir o impacto das consequências graves que possam decorrer disso. Eu conheço gente que fuma muita maconha e se transforma em gente sem vontade, meio tontas, que preferem ficar nos sofás escutando música do que fazer qualquer outra coisa. Um outro aspecto, que não se diz, é que a marijuana também é cancerígena, muito mais que o tabaco. Creio que é preciso dizer tudo e debater tudo muito bem nesse momento.
Folha – E o que mudou no Uruguai nos últimos tempos?
Cabrera – Nos últimos dez anos [período da gestão da Frente Ampla], todos melhoraram. Ricos, pobres, gordos e magros (risos). E, quando uma sociedade melhora, também se elevam as exigências, isso aconteceu no Brasil também, não? Se há 30 milhões de pessoas novas na classe média, elas querem mais participação. É parecido aqui, guardadas as devidas proporções.
Mas isso gerou também um sentimento novo, a classe média de antes assustada com os que vêm debaixo. Aqui, os que estão mais criticando o governo são aqueles setores que estão cômodos, mas que não se comovem com o fato de outros estarem saindo da pobreza, são cada vez mais egoístas. Só olham para si e dizem “não é possível que me coloquem mais impostos”, sem se dar conta de que são necessários para dar condições e fazer investimentos para os mais pobres. Há um egoísmo, hoje, que creio que vai além da ideologia. Em vez de estarem, de algum modo, felizes com um governo que se lembre dos mais liquidados, não, pedem que dêem mais a eles, que já têm dois carros na garagem. Eles reclamam que os aeroportos estão cheios, que os planos de saúde particulares estão atendendo mais gente. Que vão à praia no verão e está tudo lotado desde muito cedo.
Folha – Como essa cultura política que vem do passado pode ajudar a alcançar consenso nessas diferenças?
Cabrera – Acho que é possível, porque elas nos inculcaram uma cultura política republicana muito forte, uma muito boa educação pública, que já vem desde o fim do século 19. Uma educação gratuita, laica, com acesso à universidade. Vejo o debate sobre educação que há hoje no Chile e penso: no Uruguai já temos isso, há tempos.
Creio que a cultura do diálogo vai nos ajudar. É uma tradição, chamar todos os partidos e falar com todos os setores. É nossa tradição do consenso, isso nos diferencia tanto da Argentina. Penso no caso da discussão sobre o imposto da soja, em 2008, lá. Houve tanto enfrentamento, que fez com que o governo se pusesse contra a imprensa e se armasse um conflito que não está resolvido até hoje. No Uruguai isso teria sido levado para outro lado, se buscaria consenso, nem que demorasse meses de negociação.
Folha – E você acha que uma eventual vitória do Partido Nacional (Blanco) pode mudar isso?
Cabrera – Com certeza, a primeira coisa que cairá, e que eles já anunciaram, é a lei de 8 horas de trabalho rural. O partido blanco sempre foi representante dos interesses dos estancieiros, dos grandes fazendeiros, e isso vai ser o primeiro a cair. Imagine, um governo que fez com que aqueles que trabalhavam de sol a sol, comiam um pedaço de carne qualquer e dormiam no chão tivessem o trabalho regulado e pudessem viver com mais dignidade.
Folha – É o principal legado de Mujica?
Cabrera – Há muitos pontos, mas acho que o principal é o fato de ter colocado o Uruguai na conversa. Ninguém nunca falou do Uruguai no mundo, às vezes, sobre o futebol. Nossa arte, que é muito produtiva _temos dezenas de peças em cartaz, cantores, escritores_ não viaja muito. Nosso comércio é limitado à região. Com Mujica o nome do Uruguai soa fora do país, trata-se de um marketing bom em vários aspectos, inclusive para o econômico.
Além disso, acho que Mujica recupera uma imagem do político que beneficia os políticos do mundo todo, que estão tão desacreditados.
Folha – Como define seu estilo?
Cabrera – O que faço é muito música daqui, com grande influência do jazz, no sentido da abordagem, mais do que no conteúdo, de música platense, argentina e do Brasil. Tenho 57 anos e toco há mais de 50, meus caminhos, meus processos não são conscientes, não elaborei um plano.
Folha – Como se sente quando toca no Brasil?
Cabrera – Fui poucas vezes, a Brasília, Rio e São Paulo. Sempre foi muito bem, é uma lástima que o Uruguai e o Rio Grande do Sul não tenham mais contato, há tantas afinidades! Um gaúcho está mais próximo de nós do que da cultura tropical do norte do país. Deveríamos aprender o idioma de ambos os lados, e interagir mais.