Não, não está todo mundo doidão no Uruguai

Sylvia Colombo

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Todas as vezes em que vim a Montevidéu realizar alguma cobertura, nos últimos dois anos, foi assim. Amigos, conhecidos, contatos, imediatamente perguntam se vou comprar maconha, se aqui está todo mundo fumando na rua e se divertindo a valer, se Montevidéu virou uma nova e badalada Amsterdã e se tudo é permitido. Então, agora que começarão a sair as minhas primeiras matérias da cobertura das eleições uruguaias no próximo domingo, já queria logo avisar: Não, não está todo mundo doidão no Uruguai.

A Lei da Maconha, aprovada pelo Congresso em dezembro do ano passado, prevê que o Estado passe a se responsabilizar pelo cultivo, produção, e distribuição. O consumo já não era penalizado há décadas, muito antes de outros países latino-americanos. O que ainda falta regulamentar e está num impasse é a parte da comercialização, ponto mais delicado, pois os diferentes grupos políticos têm visões opostas sobre se o Estado deve ou não vende-la e se é ético que receba dinheiro por isso (leia matéria hoje no caderno Mundo).

O atual presidente, José “Pepe” Mujica, ficou internacionalmente conhecido por impulsionar essa lei. E com isso transformou-se num ícone do progressismo internacional. Mas será mesmo que se trata de algo revolucionário dentro do contexto histórico uruguaio? A resposta é não.

O Uruguai é um país singular na América Latina, e isso muito antes de Mujica nascer.

Durante os tempos coloniais, foi uma das poucas possessões ibéricas onde a Igreja não logrou expandir-se. Nem a Católica, nem nenhuma outra. Diferentemente de outros países da região, no Uruguai não há igrejas suntuosas, crucifixos ou símbolos religiosos em geral. O assunto é tratado como algo de foro privado.

Cidade de porto, muito aberta ao trânsito de estrangeiros, Montevidéu acolheu a diversidade do pensamento europeu nos séculos 18 e 19, principalmente. Situado entre dois gigantes, o Brasil e a Argentina, o Uruguai foi motivo de cobiça dos países-vizinhos, o que provocou um sentimento forte de defesa e apego à lei e às instituições locais. Esse sentimento ficou expresso nas vezes em que a cidade foi sitiada. A mais séria delas foi durante a chamada Grande Guerra, em que se enfrentaram os federalistas argentinos associados aos chamados “blancos” uruguaios, contra os unitários do país-vizinho, associados aos colorados.

O fato é que a capital do país passou oito anos cercada por tropas hostis, e aguentou esse período devido à formação de um bloco interno e militar de resistência composto por europeus, brasileiros, africanos, argentinos e uruguaios. O pensador e depois presidente da Argentina, Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), quando chegou à Montevidéu às vésperas da campanha para derrubar o governo autoritário de Juan Manuel de Rosas (1793-1877) impressionou-se com o que viu. Em sua opinião, o porto uruguaio era muito mais cosmopolita, aberto e fervilhante que o de Buenos Aires. Entre os personagens célebres engajados na resistência de Montevidéu estava Giuseppe Garibaldi (1807-1882), depois conhecido como herói da unificação italiana. No Uruguai, Garibaldi dirigiu uma esquadra naval, e sua casa até hoje é um simpático museu na região portuária da cidade. O Império brasileiro mandou tropas, à época, para apoiar os sitiados.

A abertura desses anos deu lugar a uma série de governos arejados no começo do século seguinte, o principal deles foi o de José Battle y Ordoñez (1856-1929), que num período de duas presidências (1903-1907 e 1911-1915) transformou o país com uma série de leis e medidas progressistas e de proteção aos trabalhadores. Reformas trabalhistas, estímulo à imigração e políticas de proteção aos migrantes, fim da pena de morte, proteção a crianças ilegítimas, lei do divórcio e outras foram aprovadas nessa época. A separação de Igreja e Estado ficou mais explícita. Desse período até o fim dos anos 30, o consumo de maconha esteve permitido, o aborto foi realizado em hospitais públicos, assim como a eutanásia.

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O legado de Mujica: a lei da maconha, a do aborto e a do casamento gay, aprovados durante o governo da Frente Ampla, não podem ser entendidos sem esse contexto histórico que explica, basicamente, o que é o Uruguai. Um estado profundamente laico, e no qual se respeitam o consenso e a expressão da maioria representados pela lei. O fato de manter a religião de lado das decisões políticas não significa, porém, que seja um país completamente liberal em termos de costumes. Ao contrário, é até bastante conservador e ancorado na família. Nem tampouco que as instituições funcionem como um relógio, há casos de corrupção e clientelismo, ainda que em menor grau.

Mais do que elevar Mujica às alturas, ou rotular o velho líder tupamaro de “doidão”, vale a pena conhecer porque esse país de características tão singulares surgiu entre o Brasil e a Argentina, mantendo conexões culturais tão fortes com ambos _a mistura da percussão afro e da lamúria tangueira na música da região é só um exemplo_ e com uma identidade particular tão forte.

Uruguai. Tão perto, tão longe.