Ayotzinapa, a solidão do México
Por que as notícias que chegam da violência no México parecem vindas de um mundo onde reina a barbárie? De tanto em tanto surgem nos titulares das agências, nos noticiários televisivos internacionais, de forma isolada como se tivessem sido cometidos em ataques de fúria momentâneos e irracionais matanças em grupo e degolações coletivas. Surgem fossas onde jazem dezenas de esqueletos, ou uma dúzia de corpos com os genitais arrancados ou, ainda, encontram-se cadáveres de jornalistas decapitados e abandonados à beira da estrada. O consumo rápido de notícias, com imediata emissão de opiniões que carecem de qualquer conhecimento, exige que se aponte um culpado de imediato, e que se ajuste o fato mal-interpretado a uma determinada opinião política: culpa dos narcotraficantes apoiados pela esquerda, culpa da brutalidade da polícia do governo linha-dura, culpa dos políticos corruptos do PRI, culpa dos EUA, que compram droga dos mexicanos. Tão mal-compreendido como quando veio à tona, o ato bárbaro mingua e desaparece em poucas semanas, às vezes poucos dias. Um mês ou menos depois, outro toma o seu lugar. E quem está pagando por essa solidão mexicana são os jovens, em geral, civis.
No último dia 26 de setembro, a polícia do município de Iguala (Estado de Guerrero) matou seis pessoas em Ayotzinapa, após uma noite de violência. Todos aparentemente inocentes que estavam na linha de fogo de seu verdadeiro alvo. Três eram estudantes, outro um jogador de futebol local, outro um taxista e sua passageira. O foco dos oficiais, segundo o que a polícia agora suspeita, era o grupo de 43 estudantes de magistério de uma escola rural de orientação esquerdista. Eles teriam sido entregues pelos próprios policiais a pistoleiros de um cartel de narcotráfico local As idades variam entre 19 e 23 anos. Todos se encontram, por ora, desaparecidos.
Manifestações vêm ocorrendo desde então nas principais grandes cidades mexicanas. A população sai às ruas exigindo o retorno dos estudantes ainda vivos, enquanto o governo apressa-se em dizer que tomará providências, ainda que deixe evidente não ter nenhuma autoridade na área _o Estado de Guerrero é um dos mais afetados pelo embate entre cartéis entre si e contraa política e o Exército.
Para trazer mais horror ao cenário, as buscas vão revelando fossas cheias de outros cadáveres. Realizam-se exames de DNA e descobre-se que não se trata dos estudantes em questão. Mas, como estes viraram obsessão da mídia internacional e da opinião pública local, as notícias que se publicam no dia seguinte são de um desrespeito imenso aos anônimos ali enterrados: “Corpos da fossa coletiva não são de estudantes”.
O México vive hoje uma das mais séries crises humanitárias de sua história. Em seu livro mais recente “ZeroZeroZero” (Companhia das Letras), o escritor italiano Roberto Saviano diz que quem quiser entender o mundo de hoje, precisa antes entender o México. Isso porque, como bem explica em sua reportagem cheia de bastidores da política e do narcotráfico, trata-se do exemplo mais concreto de como a proibição da droga criou uma empresa tão poderosa e tão internacional, que já não se trata mais de um enfrentamento maniqueísta de polícia contra bandido, bem contra o mal, bandoleiros românticos contra capitalistas (se é que em algum momento foi). Estaria acima dos poderes do governo, ou de vários governos. Em outro excelente livro sobre a realidade mexicana recente (“El Narco”), o jornalista norte-americano radicado no DF Ioan Grillo, descreve o modo como o narcotráfico corrompeu as autoridades regionais, e como o Estado nacional já não consegue atuar em algumas delas. Guerrero é um exemplo, mas há outros, como Sinaloa, e o não tão distante Michoacán, onde estive em fevereiro deste ano acompanhando uma ação de milícias civis tomando uma cidade da mão dos criminosos. Ali, o Estado tampouco teve como reagir, e acabou cooptado pela milícia.
Em outro bom livro sobre o tema, “Medianoche en México”, o jornalista mexicano Alberto Corchado trata do surgimento desse poder paralelo por meio de seu modo de atuação, e descreve como a polícia e o Exército, em muitas regiões, já estão completamente corrompidos e atuando de acordo com interesses locais. Saviano, ainda, ressalta que o poder dos neo-narcotraficantes se baseia hoje nem tanto nas quantidades de cocaína que transportam para os EUA, mas na eficiente rede de extorsão armada para, ao tomarem o comando das cidades das mãos das autoridades civis, exigirem de agricultores, produtores, comerciantes e empresários uma parte de seus ganhos. É como se um imenso e inescapável novo imposto se impusesse aos cidadãos mexicanos. E quem não paga, aparece nas medonhas cenas descritas acima.
Os assassinatos coletivos e de civis que vêm ocorrendo no México não são pela droga propriamente dita, mas por questões políticas relacionadas ao negócio da droga. São demarcações de território, mensagens enviadas entre os cartéis ou de um determinado cartel à polícia e ao Exército. O caso dos estudantes não está completamente esclarecido, mas o que se conhece aponta para mais uma dessas sinalizações políticas. A polícia, se de fato for confirmada a suspeita, teria entregue os estudantes ao narcotráfico para intimidar pequenos proprietários, com quem se relacionavam os estudantes e a quem treinavam para atender um dia, depois de formados professores.
Não se trata de uma guerra de dois lados, trata-se de um Estado que, no interior, abandonou a democracia e vê o retorno de procedimentos medievais. O México dito moderno, o que realizou uma reforma energética recente, privatizou a produção de petróleo, cresce a 4% ao ano e garante os direitos civis da carta constitucional pioneira na América Latina, não combina com esse México brutal que agoniza no interior, resultado de uma decisão do governo conservador do PAN, em 2006, de adotar uma postura bélica com relação ao narcotráfico. Já são mais de 60 mil mortos e quase 80 mil desaparecidos. Hora de o presidente Enrique Peña Nieto apresentar novos planos para combater o problema, e talvez abrir a discussão sobre a legalização de pelo menos alguns tipos de drogas e da participação dos EUA em programas para debelar o problema.