O drama da Biblioteca España e o pesadelo contínuo de Medellín
Quando visitei Medellín pela primeira vez, em 2007, o que mais queria conhecer era o mítico bairro de Santo Domingo Favio. Conhecido como periferia boêmia e ponto de encontro de imigrantes de várias partes da Colômbia e dos países vizinhos, que chegavam para tentar a vida na grande cidade, Santo Domingo Favio se transformara, nos anos 70 e 80, num dos mais perigosos bairros da América Latina. Era ali um dos principais “headquarters” do Cartel de Medellín, comandado por Pablo Escobar (1949-1993). O bairro refletia a violência que o capo irradiava para todo o país com seus atentados e carros-bomba, sua taxa de homicídios era a mais concentrada da Colômbia. Um retrato literário e agudo de como era a vida em Santo Domingo Favio está no excelente “A Virgem dos Sicários” (Companhia das Letras, 2006), no qual Fernando Vallejo relata o período através dos olhos de um jovem sicário nascido ali, suas esperanças, seus desejos, sua certeza da morte violenta e certeira muito próxima.
Pois, naquele agora distante 2007, Medellín vivia um período de euforia. Morto Escobar, executado por forças do Exército em ação conjunta com paramilitares, Santo Domingo Favio era o principal ponto da cidade a mostrar as transformações decorrentes da pacificação. O governo municipal do sociólogo Sergio Fajardo, determinado a transformar Medellín num “case”, implantou uma série de medidas urbanísticas de resgate da confiança e da convivência na cidade. Vieram o Metrocable (sistema de bondes aéreos, depois copiado pelo governo do Rio no Morro do Alemão), as escadas rolantes gigantes da Comuna 13 (uma das maiores favelas de Medellín) e, para coroar o projeto, a imponente Biblioteca España, com ajuda financeira do país europeu, representado em sua inauguração pelo então rei Juan Carlos e a Rainha Sofia.
Desenhada por Giancarlo Mazzanti e integrada ao eficiente e exemplar sistema de bibliotecas colombianas, a Biblioteca España funcionava em três gigantescos edifícios, blocos negros que podiam ser vistos desde o pé da montanha, rodeado pelas casas humildes da população local. Com mais de 9 mil títulos, um auditório e um orçamento para eventos, realizava ciclos para crianças e jovens da região. No vídeo abaixo, pode-se ter uma ideia do impacto visual que causou o efeito de uma injeção de estímulo e auto-estima na população dos morros.
Infelizmente, em minha mais recente visita a Medellín, percebi que o sonho desinflava. Apesar de manter as taxas de homicídio mais baixas do que nos tempos de Escobar, Medellín voltava a entregar-se às regras do narcotráfico, os ex-paramilitares e ex-Cartel de Medellín se juntam num bolo que já não tem mais ideologia, mas voltou-se integrado a voltar a traficar a droga por meio dos corredores que levam às rotas mexicanas. E a Biblioteca, ainda símbolo de tudo que se passa ali, dá sinais dessa mudança de tempos. A vi, com tristeza, coberta com grandes telas negras. Pergunto porque, e a resposta é ainda mais triste: “está soltando seus tijolos, estão caindo nas casas das pessoas e machucando a população”. E não começou ontem, o processo já ocorre há meses.
Há muita discussão sobre o que se passa em Medellín. Enquanto muitos têm medo de admitir que as coisas não andam tão bem como se mostram nos congressos urbanísticos, outros chamam a atenção para um problema que começa na esfera nacional, e aponta para a urgência de que se chegue logo a um acordo entre o governo e as guerrilhas, como se vêm negociando em Havana há quase dois anos. Enquanto isso, o local segue coberto. Converso com alguns adolescentes que encontro no jardim, numa fresca manhã de domingo. Nenhum lê livro algum, mas os três estão agarrados a seus celulares: “A gente vem aqui porque tem wifi, mas quase nunca entramos no prédio”. Segundo o jornal “El Tiempo”, orçamentos realizados para a reforma do local estimam que se gastará o mesmo ou mais na reforma do que se gastou na construção. Parece que o modelo colombiano de bibliotecas, elogiado mundo afora e usado como exemplo em vários países, incluindo o Brasil, precisa prestar mais atenção ao que acontece em Medellín, um lugar tão simbólico para que o país possa, em breve, dizer mesmo que está em paz. Colocar os ladrilhos de volta no prédio da Biblioteca España não basta. Há que se ocupar da economia da violência, além de renovar as políticas culturais e de estímulo à leitura. Antes que volte a ser realidade o que Vallejo dizia do bairro em “A Virgem dos Sicários: “Santo Domingo Favio é um bairro que não tem nada de santo como sugere o nome: este é um verdadeiro assassino. Depois sempre chegam os policiais, retiram os corpos, e depois nada. é como se nada tivesse acontecido. a vida continua a ser vivida até que um novo tiroteio nos arranca do tédio.”