Morre Zileri, pai da “Caretas” e inimigo das ditaduras
Existem momentos históricos em que algumas publicações ganham relevância concreta na América Latina, pela coragem e seriedade que mantêm na defesa de valores democráticos contra regimes ou situações que os colocam em risco. Foi o caso do jornal “El Espectador”, da Colômbia, na década de 80, assolada pelos crimes do narcotráfico, ou o “La Razón”, nos difíceis anos 70 na Argentina. A revista peruana “Caretas”, sem dúvida, entra nesse grupo com grande destaque. Se ganhou maior projeção internacional nos anos 90, durante a ditadura de Alberto Fujimori (1990-2000), sua presença questionadora e irreverente já havia atravessado outros períodos conflituosos, como as ditaduras de Manuel Odría (1950-1956) e Francisco Morales Bermudes (1975-1980).
Com algum atraso, registro aqui no blog a morte de Enrique Zileri, seu diretor, ocorrida no último dia 25 de agosto, aos 83. A notícia repercutiu em vários jornais estrangeiros (“New York Times”, “The Economist” e outros lhe dedicaram obituários), mas o mais comovente foi acompanhar pelo Twitter os relatos de jornalistas mais jovens, que compartilharam inúmeras lembranças pessoais de seu convívio com o veterano. “Ele podia inspirar ou aterrorizar o eclético grupo de jornalistas de ‘Caretas’ com uma simples, binária, alternativa: produza um furo ou sofra uma desgraça temporária”, disse Gustavo Gorriti, um de seus principais repórteres. Em “Caretas”, Gorriti cobriu os bastidores da guerrilha Sendero Luminoso, investigando sua formação e armação. Também em “Caretas”, associado a uma rede de correspondentes que atuavam na selva peruana, relatou em primeira mão os enfrentamentos desta com o Exército, o acionar das milícias e o ocaso do conflito, que foi responsável pela morte de 70 mil peruanos. Em Ayacucho, destacava-se o trabalho do repórter Bustíos, depois morto pelo Exército em 1988.
“Caretas” foi criada pela mãe de Zileri, Doris Gibson, nos anos 50. Desde cedo, a publicação enfrentou fechamentos arbitrários do governo, o primeiro ainda nessa época, por ordem do ditador Odría. Entre 1968 e 1977, a revista ainda seria fechada seis vezes, e Zileri, além de uma condenação de três anos de prisão (depois indultada) por chamar o então chefe do Serviço de Inteligência Nacional do Peru, Vladimiro Montesinos, de Rasputin, teve ainda que exilar-se duas vezes, em Portugal e na Argentina. Nos anos 70, durante a ditadura militar de esquerda de Velasco Alvarado (1968-1975), a “Caretas” resistiu a um processo de nacionalização dos jornais levada adiante pelo governo.
Durante os anos Fujimori, foi o primeiro jornal a encarar de frente o regime que fechou o Congresso em 1992, transformando-o em uma ditadura. Expôs os abusos na perseguição à oposição, e expôs os casos de corrupção que acabaram por dinamitar o governo. Fujimori, hoje aos 76 e com câncer de garganta, está preso desde 2009. No processo de condenação do ex-ditador, as revelações de “Caretas” foram essenciais.
Zileri, que foi presidente do International Press Institute e vencedor de vários prêmios, como o Maria Moors Cabot, da universidade de Columbia, vinha atuando na discussão sobre a legalidade das compras de outros veículos que vem sendo operada no Peru. Com outros jornalistas, assinou um abaixo-assinado contra as operações que dão ao grupo “El Comércio” 80% do mercado. A seu lado, estava o escritor Mario Vargas Llosa. “Era um infatigável defensor da liberdade e da democracia, nunca podia ser comprado ou intimidado”, disse dele o prêmio Nobel. Já o escritor John Dinges, ex-correspondente do “Washington Post”, professor da Columbia e um dos principais estudiosos das ditaduras latino-americanas, disse que Zileri era “sem exagero, um dos gigantes do jornalismo da região”.
“Caretas”, por sorte, resiste à crise das publicações impressas na América Latina e continua sendo vendida e esperada nas bancas de jornais peruanas. A cerca de um ano das próximas eleições presidenciais, em que o fujimorismo é o favorito para vencer o pleito, por meio da filha de Fujimori, Keiko, e em que as outras forças políticas (Alan García, Alejandro Toledo) respondem por casos de corrupção, uma publicação como esta é mais do que necessária no Peru, país que, na última década, se transformou num dos motores do alto crescimento econômico da região.