Vale lembrar Cortázar sem falar do que há de incômodo?

Sylvia Colombo

Li com algum atraso boa parte dos textos comemorativos dos cem anos do nascimento do escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984). Impressionante como o jornalismo literário, aqui e fora, vem perdendo a veia crítica em detrimento da pura celebração, potencializada pela pressão do mercado editorial de propagandear seus lançamentos. Não foi diferente com Cortázar, com exceção de dois artigos que li, um num suplemento mexicano, outro num espanhol, não vi nada além do lugar-comum. “Pai do boom latino-americano”, “vanguardista”, “experimental”, “influência para os cruzamentos entre literatura e cinema”, o “argentino encantado com Paris” e com “uma Buenos Aires mítica” e por aí vai.

Não quero aqui polemizar com a ideia, correta, de que Cortázar é um dos grandes nomes da literatura mundial no século 20, inovador e referência no experimentalismo na literatura latino-americano e intelectual engajado e apaixonado pelas questões políticas de seu tempo. Mas o fato é que nem tudo são maravilhas com relação a seu legado literário, cultural e político. E isso, os textos de celebração de seus 100 anos, no Brasil e no mundo, falharam em mostrar.

Um dos pontos que não foram levantados é que, nos últimos tempos, Cortázar tem sido questionado dentro da Argentina por escritores contemporâneos. O mais famoso deles é Cesar Aira, mas a opinião é compartilhada por alguns críticos de renome. Seu argumento é que Cortázar é um escritor adolescente e para adolescentes. E que, apesar de deslumbrar qualquer pessoa com vocação literária desde uma tenra idade, falha em deixar uma real marca que revelaria uma verdadeira herança na obra daquele que veio depois. Uma leitura na idade adulta causaria decepção e abandono. Fato? Não sei afirmar, mas que aí há um debate, no qual os escritores brasileiros que também sentiram fascínio por Cortázar na juventude, mas depois o esqueceram, poderiam entrar para discutir.

Outro ponto, esse mais local, mas com ecos em todo o continente, é o de sua leitura política. Como todo argentino que sai e radica-se em outro país, Cortázar deixa uma lembrança amarga nos compatriotas. Mais do que outros povos, o argentino ao demonstrar patriotismo é sentimental e tradicionalista, e aqueles que decidem ser argentinos fora dali têm dificuldades para ser entendidos e integrados à nação. Aconteceu com Cortázar, com Borges e até com Lionel Messi. Contra o peronismo [o que por si só gera uma fricção em sua terra-natal], Cortázar radicou-se em Paris em 1951. Pela capital francesa, e não a Buenos Aires, faria declarações de amor constantes ao longo de sua vida.

Cortázar vê livros em banca, em Paris (Divulgação)
Cortázar vê livros em banca, em Paris (Divulgação)

Cortázar abraçou a causa da revolução na América Latina de um modo geral, e não de forma localizada para seu país. Foi um entusiasta da Revolução Cubana (1959) e denunciou a repressão durante as ditaduras que se espalharam pelo Cone Sul, principalmente na década de 1970. Em 1971, depois do “caso Padilla”, juntou-se a intelectuais que passaram a fazer, a partir de então, a crítica aos abusos do regime de Fidel Castro. Cortázar, porém, nunca se envolveu nos enfrentamos locais da Argentina. Sua postura crítica com relação ao peronismo fez com que seu nome ficasse sempre “correndo por fora” nas homenagens e celebrações literárias locais. Agora, com a comemoração do centenário, o escritor foi disputado, com discrição, por dois grupos.

Os anti-kirchneristas quiseram lembra-lo por sua oposição ao peronismo que o levou a sair do país, já os defensores do governo Cristina Kirchner, preferiram reforçar seu lado anti-americanista, hoje uma das bases do discurso  da presidente. O fato é que Cortázar parece gerar resistência, na Argentina, na hora de provocar um debate amplo sobre seu legado, por conta de disputas ideológicas pontuais. Hoje, quando são celebrados autores mais engajados, como Rodolfo Walsh (1927-1977), montonero e assassinado pela repressão, ou mesmo Roberto Arlt (1900-1942), por ter sido um imigrante não integrante da elite dominante na época, Cortázar parece transitar noutra órbita e interessar, novamente, apenas os adolescentes ou os que se dedicam a estudar sua obra.

Talvez nada do mencionado aqui manche sua reputação literária como um dos gênios da literatura ocidental ou nem mesmo desautorize as merecidas comemorações festivas. Mas qual é a razão de marcar as efemérides se não é para, também, analisar a influência e a relevância real das obras e das cabeças dos homens que as geraram nos dias de hoje?  A herança de Cortázar teria mais a contribuir ao debate cultural se fossem levantados também os temas incômodos e atuais, por mais que isso vá contra a lógica dos lançamentos e das agendas dos meios culturais.