Michoacán, dramas medievais e olho no futuro
Nas últimas semanas, o México aprovou uma reforma energética ambiciosa, privatizando parte da produção e da distribuição de petróleo e regularizando a produção de “shale gas”, com vistas a ser um gigante na produção de energia nas Américas, ao lado dos EUA e do Canadá. Junto a várias medidas de modernização da economia e da legislação trabalhista, o país mostra-se otimista com as perspectivas de crescimento para este ano (4%) e celebra o estreitamento dos laços comerciais com os EUA. Publicações econômicas exaltam o desempenho dos mexicanos, e seu presidente recebe afagos internacionais.
No meio desse entusiasmo, com os olhos voltados para o futuro, porém, o México também assiste a uma guerra de cunho medieval, que está devastando alguns dos Estados do país. Entre aqueles que saíram do controle do governo e onde o Exército já não consegue mais atuar está nada menos que Michoacán, um riquíssimo produtor agrícola, que abriga um importante porto comercial, e onde se desenrolaram passagens importantíssimas da história mexicana. Ali nasceu o padre Morelos (1765-1815), importante herói da primeira tentativa de independência do México, depois executado pelo Santo Ofício. E onde se deram as condições de promulgar-se a primeira Constituição do país. Também em Michoacán foi fundada a primeira Corte Suprema do país.
Para quem pensa que a guerra do narcotráfico está distante dos grandes centros, em lugares desérticos e liderada por gângsteres rurais de chapelão e que vivem em grutas, Michoacán prova o contrário em cada esquina. Trata-se de um Estado rico, próximo à cosmopolita Cidade do México, e até pouco tempo atrás, uma das referências do turismo local. Ali, o narcotráfico virou empresa, espalhou-se pelas atividades comerciais, pela produção industrial local, pelas repartições do poder público regional e pela imprensa.
Michoacán foi onde a guerra iniciada pelo ex-presidente conservador Felipe Calderón contra o crime organizado começou, em 2006. Acreditando numa solução bélica, Calderón colocou lenha num conflito entre forças do narcotráfico e do Exército que já causou mais de 60 mil mortes e 100 mil desaparições.
Estive em Michoacán em fevereiro último, quando grupos de civis paramilitares (as chamadas “autodefensas”) entraram na simbólica cidade de Apatzingán, para “limpar” o local da influência do narcotráfico. Encontrei um Estado em convulsão, a poucos quilômetros da imponente Morelia, exuberante capital do departamento. No caminho, foi possível conversar com líderes indígenas purépechas, também eles levantados em armas tanto contra as forças paramilitares quanto contra os criminosos. As brigas por demarcação de território tinham, na noite anterior à minha visita, provocado a morte por degola de alguns membros da tribo.
Nada parece ter mudado em Michoacán desde então. Nos últimos dias, foram encontrados dezenas de corpos em fossas coletivas na região. Num vídeo que causou escândalo, duas prefeitas de cidades da região apareceram em uma festa na presença dos líderes narcos, o mais famoso dele, “La Tuta”, parece ter assumido a administração local. Por outro lado, aumentam as denúncias de deserção de soldados e cooptação dos mesmos pelo lado do crime.
O cartel que atua em Michoacán é conhecido como Os Cavaleiros Templários. Extremamente religiosos, inspiram-se num grupo de nobres franceses que participou da Primeira Cruzada, no século 12. Essa versão mexicana é extremamente cruel e violenta, financia suas ações com base em extorsões e exploração de caminhos da droga para os EUA. São muito disciplinados, os membros que forem pegos consumindo drogas são executados. Os Cavaleiros Templários são dos mais novos carteis formados no México, a princípio uma dissidência da Família Michoacana. Agora que o principal cartel, o de Sinaloa, recebeu um golpe fortíssimo, com a prisão de seu líder, o “Chapo” Guzmán, os Cavaleiros disputam o comando das rotas da droga para os EUA com os Zetas. Os principais crimes, com a morte coletiva de civis, são para demarcar território entre eles. Nas minhas andanças por ali, via-se os líderes dos Cavaleiros na televisão, ou na boca do povo, comentando a política e questões da sociedade. Estão metidos de forma profunda no cotidiano da população.
O governo mexicano tentou solucionar o problema do modo mais equivocado possível. Em parte reconhecendo sua incapacidade de conter a violência, aceitou a existência dos grupos de civis armados. Ofereceu armas e apoio, além de treinamento e, consequentemente, uma espécie de anistia para seus crimes. Firmou pactos com essas associações no sentido de transforma-las em “forças cidadãs”, controladas e armadas pelo Exército. A solução não é nova. No Peru, também se armaram civis durante os anos de combate ao Sendero Luminoso. Na Colômbia, os grandes cartéis foram extintos com a associação do apoio norte-americano com forças paramilitares. Em parte, essas iniciativas resolveram o problema, mas criaram outros. Um poder paralelo ao Estado, que não se dissolve de uma hora para outra, além de promover um golpe aos valores morais e institucionais de um governo republicano.
No México, a experiência não está funcionando, pelo menos é o que evidenciam as notícias das últimas semanas. Parte das Autodefensas aderiu ao chamado do governo, mas parte se recusou. Fragmentada, a milícia está naufragando, enquanto o crime avança. Enquanto o Uruguai aprova a legalização da maconha, países da América Central e a Colômbia admitem debater alternativas à opção bélica, tratando o tema das drogas de um ponto de vista de saúde pública. É evidente que nenhuma discussão sobre liberação do comércio de substâncias ilegais pode existir enquanto os EUA, principal mercado consumidor, não se posicionar de modo mais claro nesse sentido. Porém, é mais que urgente que a América Latina, principalmente os países produtores e distribuidores, coloquem o assunto na pauta. A solução militar já causou muitas mortes e continua devastando Estados inteiros. Para Michoacán, infelizmente, já é tarde.