Memória viva da América Latina caminha discretamente por Paraty
No meio do fuzuê criado em volta dos escritores badalados desta edição da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), uma figura discreta tem passeado silenciosamente, sem reclamar da dificuldade de andar sem escorregar pelas ruas de pedra da cidade, mesmo da altura de seus 83 anos. O chileno Jorge Edwards, que lança aqui “A Origem do Mundo” (1996), pela Cosac Naify, é nada menos que uma testemunha privilegiada de boa parte dos importantes acontecimentos políticos e literários da América Latina na segunda metade do século 20.
Ao sentar para conversar com a Folha, no jardim da pousada em que se hospeda, Edwards começa a listar os brasileiros famosos de quem foi amigo, entre eles Rubem Braga (1913-1990) e Vinicius de Moraes (1913-1980). O primeiro apresentou-o à obra de Machado de Assis (1839-1908), sobre quem depois escreveria (“Machado de Assis”, ed. Omega, 2002) e tomaria como inspiração para algumas de suas tramas, como a de “A Origem do Mundo”, que tem ecos de “Dom Casmurro”. “Em ambas está o tema do ciúme, que pode se transformar numa obsessão tão grande e atravessar tantos anos na vida de um indivíduo, que se torna indissociável de sua personalidade.”
De Vinicius, Edwards conta que foi um importante vínculo entre artistas latino-americanos, como seus compatriotas Pablo Neruda (1904-1973) e Gabriela Mistral (1889-1957), ambos prêmios Nobel de literatura. “Eu lembro de como Vinicius causava graça, de sua volumosa barriguinha. Ele tinha que se sentar nos restaurantes conosco longe da mesa, e não largava o copo de uísque”.
Edwards construiu sua carreira em paralelo à vida diplomática. “Não acredito muito em viver só de literatura, o escritor fica muito ansioso, faz coisas por dinheiro. Eu prefiro ter outra profissão e dedicar aos meus romances o tempo que eles necessitam.”
Sua carreira de diplomata o levou a observar de perto a revolução militar peruana (1968) e a ascensão de Velasco Alvarado (1909-1977), líder nacionalista que inspirou, entre outros, o ex-presidente venezuelano Hugo Chávez (1954-2013).
Porém, a experiência mais intensa foi com relação à Revolução Cubana (1959). A princípio, Edwards foi um apoiador, pois considerava-se um homem de esquerda. Quando seu amigo pessoal, Salvador Allende (1908-1973), assumiu no Chile, enviou o escritor para ser diplomata em Havana, abrindo a embaixada naquele país. “Cheguei depois de uma longa viagem, do Chile ao México, do México a Cuba. Estava exausto, e a primeira coisa que me disseram é que eu deveria dar uma entrevista ao “Granma” [jornal oficial do partido comunista cubano]. Era madrugada. Disse a mim mesmo, “por que isso não pode esperar até amanhã?”. Fui, então, conduzido a uma sala, onde me enrolaram até me impacientar, até que chegou Fidel Castro, e ficamos conversando por três horas, principalmente sobre o que deveria acontecer no Chile. Castro não acreditava que Allende se manteria no poder, infelizmente estava certo.”
Feliz com a proximidade com quem ele considerava ser um líder revolucionário da esquerda latino-americana, Edwards encontrou-se, no dia seguinte, com poetas e artistas locais. Foi quando começou a inteirar-se dos desaparecimentos e perseguições, principalmente a homossexuais e opositores. “Logo senti que coisas que não deveriam estar acontecendo eram uma realidade. Falei disso abertamente. Pouco depois, Fidel armou para que eu deixasse a ilha”. O estopim, conta, foi a prisão do poeta Heberto Padilla (1932-2000), em 1971, que deu origem à cisão entre intelectuais de todo o continente e a Revolução.
“Eu hoje não me considero nem de esquerda, nem de direita. Claro que minha linguagem e meus códigos estão vinculados à esquerda, mas não defendo muito do que os esquerdistas defendem hoje, e não consigo ficar calado quando vejo os abusos aos direitos humanos e à liberdade de expressão em ambos os lados.” Criticado por apoiar abertamente a eleição do conservador Sebastian Piñeira, em 2010, Edwards se defende. “A Concertação [aliança de esquerda, hoje no poder com a presidente Michelle Bachelet] havia se desgastado, aumentado, criado vínculos complicados com a estrutura de poder. Estava começando a parecer-se ao PRI mexicano [partido originado na Revolução Mexicana, e que esteve no poder por sete décadas], era bom defender a alternância. O que não aceito é que a direita chilena ainda se identifique com o pinochetismo. É possível haver uma direita um pouco mais progressista, creio que isso é o que precisa acontecer no Chile.”
Radicado em Paris, Edwards conta que viveu o maio de 1968 ao lado do amigo mexicano Carlos Fuentes (1928-2012) e dos intelectuais que moravam na capital francesa na época. “Eu não podia acreditar na história se desenrolando diante dos meus olhos”.
Edwards se diz otimista com a América Latina de nossos dias. “Por muito tempo defendi blocos de alianças que não funcionavam, não decolavam nunca. Mas hoje vemos a Alianza del Pacífico (Colômbia, Chile, México e Peru) deixar ideologias de lado e adotar uma atitude pragmática, não ideológica. O Brasil está com problemas econômicos, mas seu potencial depois dos anos FHC e Lula é imenso. Já a Argentina eu não consigo entender. Criou e deu ao mundo tantos pensadores, artistas, tanta coisa boa vem dali, mas na política há uma infantilidade que eu não entendo. É tão anacrônico que saiam às ruas com panelas para gritar contra o imperialismo”.
Sobre a Venezuela, Edwards diz que vê semelhanças entre o país e o Chile pré-golpe, de 1973. Para ele, a polarização da sociedade era tão grande naqueles meses de protestos, que era possível pressentir o golpe se aproximando. “Quero estar errado, não sei se o desenlace será este. Vivemos outros tempos. Mas creio que as duas situações são muito parecidas.”