“O futebol é popular porque a estupidez é popular”, Jorge Luis Borges

Sylvia Colombo


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Enquanto os brasileiros não aguentam mais ouvir os argentinos cantarem: “Brasil, decíme que se siente” (algo que pode, inclusive, aumentar de intensidade nas próximas horas), vale a pena lembrar que essa aparente nação de fanáticos sempre contou, também, com um volumoso coro crítico ao futebol. Um dos mais importantes e mais eruditos autores da literatura universal do século 20, o argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) fez duros ataques ao esporte ao longo da sua vida. Considerava-o exemplo do declínio cultural da humanidade. “O homem deixou de jogar xadrez e passou a jogar futebol. É um símbolo da degradação social”. Também teceu comentários sobre a parte visual: “o futebol é esteticamente feio”, dizia. Mas o que mais o incomodava era a exacerbação de nacionalismos que aproximava as torcidas aos fenômenos políticos totalitários. “Há no futebol uma ideia de supremacia, de poder, que parecem horríveis para mim”, dizia.

Curiosamente, a vida do autor de “O Aleph” foi marcada pelas duas Copas do Mundo vencidas pela Argentina. Na de 1978, disputada em território nacional, Borges fez barulho ao participar, no dia da estreia da seleção, contra a Hungria, de um seminário sobre a imortalidade. Foi criticado, e um grupo de torcedores mais aguerridos tentou pressionar para que sua palestra simplesmente não ocorresse. O escritor tinha, então, 79 anos, e evocou Dante e outros autores para definir o que considerava ser “viver para sempre”.

Enquanto a seleção de Cesar Menotti lutava para virar um jogo que havia saído perdendo, e que terminaria 2 a 1 para o time local com gols de Luque e Bertoni, Borges fazia a seguinte reflexão: “A imortalidade se alcança nas obras, na memória que um deixa nos outros. Essa memória pode ser nímia, pode ser uma frase qualquer. Por exemplo: Fulano de tal, melhor perde-lo que encontra-lo. E eu não sei quem inventou essa frase, mas cada vez que a repito, sou eu esse homem. Que importa que esse modesto ‘compadrito’ tenha morrido, se ele vive em mim e em cada um que repete essa frase?”.

É preciso lembrar que, enquanto a seleção se apresentava a essa nação hipnotizada pela bola, ali no Monumental de Núñez, estádio do River Plate, pessoas eram levadas aos porões da ESMA (Escola Mecánica da Armada), muito próxima do local, e a outros centros clandestinos para serem torturadas ou mortas pela repressão do governo militar (1976-1983).

Apesar do desprezo que tinha pelo futebol, Borges escreveu um conto sobre o assunto, junto com o parceiro de toda a vida, Adolfo Bioy Casares (1914-1999). Em “Esse Est Percipi” (em latim, “existir é perceber”), os autores questionam a capacidade que temos de imaginar a partir da ficção. A história acompanha um torcedor que se dá conta de que o estádio acima mencionado desapareceu. Ao tentar investigar o que aconteceu, descobre que o futebol já não era praticado em Buenos Aires havia muitos anos, e tudo o que ele sentira como real era invenção dos narradores, da TV e do rádio. “Os estádios já são demolições que se caem em pedaços. Hoje tudo se passa na televisão e no rádio. A falsa excitação dos locutores nunca o levou a pensar que tudo é mentira? A última partida de futebol que se jogou nesta capital foi no dia 24 de junho de 1937.”

Será que não vivemos num mundo parecido? Em que a TV, certos narradores e a publicidade, nos fazem acreditar numa saga heroica que muitas vezes não corresponde ao que realmente acontece?

Borges morreu em Genebra, em 14 de junho de 1986, poucos dias antes de Maradona anotar, contra a Inglaterra, um gol de mão, então legitimado pela encenação dos jogadores e pela euforia de narradores e torcedores. No dia 29, a Argentina se sagraria campeã pela segunda vez e voltaria do México coberta de glórias. Borges foi enterrado na Suíça, onde está até hoje.

 

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