Quando um gol contra foi fatal

Sylvia Colombo

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Que bom que o Brasil não é a Colômbia de 1994. Que bom que a própria Colômbia dos dias de hoje não é mais como a Colômbia de 1994. Naquela ocasião, um gol contra, como o que infelizmente marcou Marcelo na abertura da Copa do Mundo do Brasil, poderia ter tido um fim muito mais macabro.

Por esses dias, coincidentemente, aqui em Bogotá e em Medellín, estão sendo realizadas homenagens ao zagueiro Andrés Escobar, assassinado há 20 anos, a mando de narcotraficantes, após acidentalmente assinalar um tento a favor dos Estados Unidos, na Copa daquele ano. O gol eliminou as chances da Colômbia no torneio e selou o fim de uma geração de ouro do futebol do país, que contava ainda com Valderrama, Asprilla, Higuita e Rincón, entre outros.

Apesar de ter o mesmo sobrenome do mais famoso narcotraficante da Colômbia, Andrés Escobar não tinha parentesco com Pablo, ou “El Patrón”. Estava, porém, sob suas ordens e proteção, ainda que a contragosto. Nascido em Calasanz, um bairro de classe média baixa de Medellín, em 1967, o garoto cresceu sonhando em ser jogador de futebol. Muito sério e calado, alto e forte, destacou-se pela disciplina e o equilíbrio. Ficaria conhecido pelo apelido de “El Caballero”. Sua carreira é definida como meteórica. Após poucos tempo em clubes amadores, chegou ao Atlético Nacional de Medellín, um dos clubes mais populares da Colômbia, e daí à seleção colombiana.

No fim dos anos 80 e começo dos 90, o Nacional praticamente pertencia à Pablo Escobar. Por sua vez, narcotraficantes famosos eram donos de outros clubes. Miguel Rodríguez mandava no Deportivo Cali e “El Mexicano”, no Millonarios. Os criminosos eram fãs de futebol, iam às partidas, construíam campos e estádios e davam altos prêmios aos jogadores. Por outro lado, exigiam resultados e chegavam às vias da violência, mas, até então, nunca contra os jogadores. Quando o Nacional perdeu um clássico do “narco-futebol” para o Cali, Escobar mandou executar o árbitro na saída do estádio. O pano de fundo de tudo isso ia além das paixões futebolísticas, o esporte era nada menos do que uma grande máquina de lavar dinheiro do comércio das drogas, por meio da bilheteria e da negociação dos jogadores.

Andrés era zagueiro do Nacional, e teve papel-chave quando o time foi campeão da Libertadores, em 1989. Católico praticante, pacifista, não gostava de ter de ir visitar Escobar em sua chácara e de jogar peladas com ele. Mas teve de fazê-lo em muitas ocasiões. Anos depois, quando o traficante foi “preso” na chamada Catedral, um presídio de luxo construído por ele mesmo para evitar ser extraditado, Andrés e o resto da seleção colombiana eram chamados para participar de festas e jogos.

Os colombianos não gostam que se diga que sua grande seleção dos anos 90, a que foi capaz de meter 5 gols na Argentina em plena Buenos Aires, era fruto apenas dos caprichos e da máquina de lavar dinheiro sujo dos narcotraficantes. De fato, dela faziam parte jogadores que queriam livrar a Colômbia do estigma negativo que tinha nessa época. Junto com o técnico, Francisco Maturana, eram continuamente insultados no exterior. Sua entrada em campo era acompanhada pelos gritos de: “narcos, narcos”. De fato, o próprio governo colombiano, na pessoa do presidente Cesar Gaviria, começou a usar a imagem da seleção para vender a imagem de uma Colômbia honesta, aguerrida, vencedora. Gaviria embarcou com a seleção em muitas viagens, e acompanhava os jogadores de perto.

Em 1993, o governo dava mostras de ter tomado o controle da situação, mas não tinha o apoio completo da população. Uma operação resultou na execução de Pablo Escobar pelo Exército, em Medellín, mas as cenas da polícia tentando tirar seu corpo do local são impressionantes, a população pobre, inconformada, estava aos prantos e cercou o caixão, impedindo sua remoção. Para eles, Escobar era um pai, um provedor e uma liderança, nos bairros afastados e empobrecidos de onde vinham e onde o Estado não chegava.

No ano seguinte, a seleção colombiana chegou como uma das favoritas à Copa de 1994, nos Estados Unidos. Vangloriavam-se de que o próprio Pelé havia previsto que o time seria campeão. Andrés era o seu capitão. Porém, as coisas começaram a ir mal durante o jogo contra a Romênia. Após essa derrota, jogadores e comissão técnica começaram a receber ameaças de morte. Quando o time jogava suas últimas chances contra os donos da casa e Andrés fez o gol contra, todos suaram frio e diziam-se baixinho: “ele vai ser assassinado”.

Apesar de Pablo estar morto, o poder na cidade de Medellín estava tomado por outros cartéis e pequenos líderes. Os jogadores sabiam do perigo de voltar para casa nessas condições e tendo perdido a chance de avançar no Mundial ainda na primeira fase. Andrés, porém, queria voltar. “Tinha de mostrar a cara”, dizia, contrariando a família, que queria leva-lo de férias pelos EUA. Na noite mesmo do dia em que desembarcou em Medellín, Andrés resolveu mostrar que não tinha medo e resolveu sair com amigos. “Essa é minha cidade”, dizia. Há gravações do estacionamento da boate na qual passou aquela noite. De longe, vê-se um grupo aproximando-se dele, alguém aperta suas nádegas e o chama de “maricas”. Menciona o gol contra. Ele tenta revidar, até que chega um atirador e o mata impiedosamente. Andrés tinha 27 anos. Na época, o crime foi atribuído a um segurança da área, mas depois comprovado que os mandantes eram os irmãos Gallón, traficantes conhecidos da região.

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Hoje, Andrés Escobar é adorado pela torcida e respeitado pelos colombianos. Os apoiadores do Nacional de Medellín chegam a tatuar seu rosto na própria pele e o chamam de “O Imortal #2”. Um excelente documentário foi feito sobre sua vida. Nele, os diretores Michael e Jeff Zimbalist refazem a trajetória de Pablo Escobar, o mais temido traficante da Colômbia, e de Andrés Escobar, o rapaz que queria melhorar a imagem do seu país no exterior, espalhando uma mensagem pacifista, mas que foi morto pelo próprio crime organizado. O filme chama-se “The Two Escobars” e pode ser visto no youtube.

Como disse no começo, é difícil imaginar algo tão medieval como essa vingança brutal acontecendo na Colômbia dos dias de hoje, muito mais segura e estável. Mas, que o nome de Andrés Escobar seja lembrado nesses dias, quando completam-se 20 anos de sua morte, é sintomático dos dilemas que o país atravessa. Em três dias, os eleitores colombianos votarão para escolher entre a opção “da paz”, ou seja, o atual presidente, Juan Manuel Santos, que busca negociar o fim do conflito com as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), e Óscar Ivan Zuluaga, afilhado de Álvaro Uribe, que quer voltar ao enfrentamento bélico aos moldes do que vigorava quando Andrés foi assassinado. As contradições que enfrentam os colombianos são muitas. Basta assinalar que, em Medellín, tanto o jogador como o traficante são venerados pela população até os dias de hoje, mais de duas décadas depois de suas mortes.

O gol contra de Marcelo é muito parecido, tecnicamente, com o gol contra de Andrés Escobar. Quando o vi, pensei numa coincidência trágica, mas talvez seja apenas uma homenagem dos deuses da bola ao “Imortal #2”, nesses dias em que seu país tomará decisões tão importantes.