Brasil x Argentina, a história de uma rivalidade
A brincadeira surge tímida nas conversas e nas redes sociais. As pessoas riem de nervosas. Mas, a poucos dias para começar a Copa do Mundo do Brasil, a pergunta que não quer calar é: “Haverá um novo Maracanazo? Vamos perder para a Argentina?”. Afinal, parece que a tabela foi desenhada para que a Copa tivesse essa final. Além disso, problemas menores aqui e acolá, ambos estão bem e bastante afins do título. O fato de o Mundial ser jogado no Brasil dá mais razões para que uma e outra seleção queiram ainda mais conquistar o troféu. Além disso, a Argentina é capaz de coisas que às vezes parecem milagrosas, como a passagem acima _praticamente perdida a vaga para a Copa de 2010, nas eliminatórias, e Martín Palermo, jogador de raça e pouca estrela, típico da garra argentina, fez um gol salvador no último minuto, debaixo de chuva, contra um aguerrido Peru.
Para olhos europeus ou gringos, os sul-americanos têm uma mesma relação, apaixonada e visceral, com o futebol. Mas será que argentinos e brasileiros o sentem da mesma maneira? Se começarmos a examinar os detalhes, veremos que não.
A começar com os próprios jornalistas. Todo o contato que tive com cronistas argentinos, alguns deles meus amigos, nos dois períodos em que vivi em Buenos Aires, deixou claro para mim que possuem um conhecimento imenso, capacidade crítica e lucidez, mas são em sua maioria muito torcedores da seleção nacional. Torcedores até num sentido infantil. Já os brasileiros estão sempre criticando a seleção, o técnico, o mau humor para avaliar o desempenho do time nacional parece ser maior entre nossos compatriotas. Lembro que, na Copa América de 2011, antes de um Argentina x Uruguai que eu estava acompanhando e que estava bastante disputado, um jornalista argentino perguntou a um brasileiro quem ganharia o torneio. O brasileiro disse, sem titubear: o Uruguai. Falava com base em argumentos técnicos. O Uruguai era, de fato, o melhor time do campeonato e confirmaria isso levantando a taça duas semanas depois. “Mas como, você não está torcendo pela sua própria seleção?”, disse o argentino, de olhos arregalados.
Para jogar um pouco de luz nessas diferenças, os jornalistas e argentinófilos Guga Chacra e Ariel Palacios (ambos do “Estado de S.Paulo”), lançam “Os Hermanos e Nós” (Contexto). De narrativa leve porém cheio de informações, o livro conta a relação dos dois povos com o futebol atravessando os principais assuntos. E começam em 1912, quando um combinado da Associação Argentina de Futebol enfrentou um combinado de São Paulo, enquanto o controverso presidente argentino Julio Roca fechava acordos com o brasileiro Hermes da Fonseca.
Curiosamente, os autores mostram que, se para o Brasil, a Argentina é o rival máximo, para o país-vizinho não é bem assim. O clássico mais local, contra o Uruguai, é quase que igualmente aguerrido. E, depois de 1982, e da derrota da Guerra das Malvinas, a Inglaterra passou a ser um adversário com o qual valia jogar de forma mais dura. Como diz o escritor Martín Caparrós, o Brasil seria o “vizinho-inimigo”, enquanto a Inglaterra seria apenas o “inimigo”. Daí a importância tão grande da vitória contra esse país em 1986, pouco depois da derrota nas ilhas. Com um gol destacado como dos mais brilhantes na história do futebol, mas outro assumidamente roubado, o da “mano de Diós” (como explica o próprio Maradona, no vídeo abaixo), a Argentina eliminou a Inglaterra e avançou para a conquista do bicampeonato mundial.
O episódio dá para várias interpretações, sobre a personalidade de Maradona, sobre sua habilidade, sobre a “malandragem” argentina. É interessante a citação do filósofo Juan José Sebrelli, um craque na análise dos mitos e da história argentina. Diz Sebrelli no livro: “O gol mais famoso da história do futebol argentino é o que ele [Maradona] fez com a mão, contra a Inglaterra, em 1986, na Copa do México. Um gol feito com trapaça. Mas é o gol mais idolatrado pela população. Esta é uma sociedade que acredita que a lei está aí para ser violada. Adorar Maradona simboliza a decadência de nossa sociedade.”
A Copa de 78, durante a ditadura militar, é também esmiuçada. Outro Mundial duvidoso, por conta da pressão abertamente exercida pelo governo do general Videla para que o resultado fosse a Argentina campeã (como de fato foi). Os autores, porém, não deixam de reconhecer os craques e o talento daquela equipe. Tanto na Argentina como no Brasil de 1970, durante o governo Médici, houve uso político dos resultados para fazer propaganda do regime. “A conexão futebol-política é fortíssima nos dois países. Os governos em ambos lados da fronteira tratam o assunto como se fosse uma questão de Estado, uma espécie de epopéia nacional, uma saga de vida ou morte”, diz Palacios. Sobre o assunto, há também um excelente livro lançado há alguns anos na Argentina, “Fuimos Campeones”, do jornalista Ricardo Grotta, que esmiuça os detalhes da campanha do time argentino de 1978 dentro do contexto dos anos de chumbo e da Operação Condor. Merecia sair no Brasil.
Os autores também se debruçam sobre alguns mitos da rivalidade. Entre eles está o de que os argentinos se refeririam aos brasileiros como “macaquitos”, o que não se comprova historicamente _nem do ponto de vista semântico. “Macaquito” é puro portunhol, o correto em espanhol é dizer “mono”. O que leva a crer _aí não é suposição dos autores, mas opinião particular minha, que a expressão possa ter sido disseminada por conta de um preconceito nascido no próprio Brasil contra os argentinos. O preconceito brasileiro com relação à Argentina é muito maior do que o contrário. Ainda mais nos últimos tempos, em que a economia brasileira tem melhor desempenho que a da Argentina, nossos vizinhos nos veem com mais admiração e curiosidade por nossa música, cultura, política, etc.
Outro jogo interessante compartilhado dos dois lados da fronteira é o de adivinhar que time corresponde a qual time no país-vizinho. O Boca seria o Corinthians ou o Flamengo, ou seja, mais popular, e o River, o São Paulo ou o Fluminense? Os jornalistas explicam e oferecem uma tabela, também expondo casos meio únicos do futebol argentino, como o Racing, time dos Kirchner, com um longo histórico de derrotas nos últimos tempos, mas ainda com fieis seguidores. O Racing é o protagonista da melhor cena de futebol do cinema argentino, durante o filme “O Segredo de Seus Olhos”, quando o criminoso é perseguido por Darín pelas escadarias do estádio do Huracán (“una pasión es una pasión”). Dicas de livros e filmes argentinos que fazem referência ao futebol também são apresentados no livro.
Para finalizar, lembro que uma vez, numa fria noite de inverno em 2008, quando fui morar na Argentina pela primeira vez, estava na cidade de San Juan. Próxima à fronteira com o Chile e encravada nos Andes, a capital provinciana não tinha nada do agitado porto de Buenos Aires. Os horários e hábitos eram os do interior, a comida era mais andina que a das pampas, o sotaque era mais puxado para o do espanhol chileno montanhês.
Pois naquele dia, o Boca Juniors, símbolo máximo do futebol portenho, enfrentaria um clube brasileiro pela Libertadores. Fui jantar num lugar da praça principal da cidade em que havia uma televisão, porque também queria ver o jogo. Qual não foi minha surpresa ao perceber que os sanjuaninos reunidos ali eram torcedores ferrenhos do Boca?? Um time surgido e criado no bairro italiano e icônico de Buenos Aires. A um sujeito que puxou papo comigo, perguntei, e ele confessou: jamais havia estado na capital de seu país, mas era “boquense” fanático. Fiquei pensando, por mais que Corinthians e Flamengo tenham torcidas em vários Estados, o Brasil não possui um time assim tão nacional e com seguidores tão cegos de paixão. O que parece comum, entretanto, é que tanto aqui como no país-vizinho, os torcedores sofrem mais pelo seu time de coração do que pela seleção nacional.
É curioso que não existam mais livros como “Os Hermanos e Nós”, que tratem dessa tão rica cultura futebolística de ambos os lados. Mesmo levar o livro para Buenos Aires não está fácil, segundo os autores. Com as importações sofrendo bloqueios do lado argentino, poucos livros estrangeiros têm chegado às livrarias portenhas. Tentou-se inclusive por meio da prefeitura de São Paulo, que quis levar 5 mil livros para o stand de São Paulo na Feira do Livro da capital argentina, em abril. Mas só conseguiu colocar 500 volumes na prateleira. As questões burocráticas, dizem os autores, fazem com que nem tentem lançar o livro lá. Uma pena.