A “fenda” como legado do kirchnerismo
Na última semana, o vice-presidente argentino foi citado para responder à Justiça sobre as acusações de tráfico de influências que caíram sobre seu nome há dois anos atrás. É improvável que a blindagem que Cristina Kirchner armou ao redor dele caia antes de findo o seu governo, no fim do ano que vem. Mas é certo que Amado Boudou passará meses de intenso desgaste e metralhado pela imprensa.
O caso Boudou é um dos tantos listados por Jorge Lanata em “10k – La Década Robada” (Planeta), que já vendeu mais de 100 mil cópias na Argentina, será lançado brevemente na Colômbia e no México, e tem data prevista para o segundo semestre no Brasil. O livro percorre os pouco mais de dez anos que vão da chegada de Néstor Kirchner (1950-2010) ao poder, em 2003 aos dias de hoje. A mala cheia de dinheiro de Felisa Miceli, os aviões de Lázaro Baez deixando o país lotados de euros, a máquina de imprimir dinheiro de Boudou são alguns dos casos listados. Também são explicados o contexto da apropriação dos direitos humanos no país, desde o fim das leis de anistia e o início do período de julgamentos dos repressores, e a guerra contra a imprensa independente, que culminou na vitória recente do governo, obrigando o “Clarín” a desfazer-se de parte de seus meios.
“É preciso reconhecer que foi uma década ganha em alguns sentidos, como o modo como a Argentina cresceu, especialmente nos primeiros anos de Néstor. Porém, também foi um período em que perdemos muitas oportunidades, uma era em que se poderia aproveitar o bom momento e ir adiante, mas não o fizemos. Desperdiçamos uma oportunidade histórica”, diz o jornalista à Folha.
A ideia central e mais interessante do livro é que durante os anos Kirchner abriu-se uma fenda na sociedade. De fato, quem acompanha de perto o que acontece no país percebe uma polarização da sociedade quase só vista nos anos da ditadura (1976-1983). “Daquela vez, demoramos mais de 30 anos para cicatrizar”, comenta Lanata. Agora, de um lado está o velho setor conservador da sociedade, mas também progressistas de esquerda inconformados com o crescente autoritarismo, intelectuais ligados a meios de comunicação e liberais. De outro, a esquerda mais dogmática e muitos, setores do movimento estudantil politizados e agrupados em organizações como La Cámpora, muitos empresários cooptados em alianças de influência. O mais terrível, como aponta Lanata, é que se apresenta uma luta entre amigos, irmãos, familiares, uma ideia generalizada de que “quem não está comigo está contra mim”.
O tema da corrupção é outro item de destaque. Não que os K a tenham inventado, mas a fizeram de modo mais sistemático e amplo. “Na época de Menem, eram propinas, mais isoladas, agora se usa abertamente as reservas, se compra. No caso dos meios de comunicação recebendo dinheiro oficial, é mais latente”, diz Lanata. Durante os anos Kirchner, diversos jornais, TVs e rádios passaram a receber uma volumosa verba oficial para difundir uma linha editorial favorável ao governo. Meios independentes, como o “Clarín” e o “La Nación” não recebem quase nada desse dinheiro. “Por sorte, este é um sistema que deve diluir-se no novo governo”, diz Lanata.
Para as eleições do ano que vem, postulam-se com mais força dois candidatos também peronistas, mas de uma linha mais à direita que o kirchnerismo, são eles o prefeito do município de Tigre, Sergio Massa, e o governador da província de Buenos Aires, Daniel Scioli. O prefeito da capital, Maurício Macri, lançou o desejo de postular-se, mas tanto ele como seus apoiadores duvidam de seu fôlego para prosseguir com o projeto.
A Argentina vive um período de vácuo entre um governo que se desgasta e finda, e outro que tem dificuldade de desenhar-se diferenciando-se do anterior, mas mantendo os princípios mais gerais do peronismo, esse sistema político e modo de ser da política argentina tão difícil de ser definido.
Inevitavelmente, muito se escreverá sobre essa década de avanços econômicos, nos direitos humanos e nas liberdades civis, mas cheia de fricção política e social e abusos, principalmente com relação aos meios de comunicação e em casos de corrupção, como o que agora atinge ao ex-presidente.
O livro de Lanata é um primeiro olhar, jornalístico, para esse período ao qual devem dedicar a pena jornalistas e historiadores. A “fenda”, porém, pode influenciar de modo negativo essas interpretações. É de se torcer, apenas, para que o período não deixe traumas tão profundos como os causados pelos horrores dos anos de chumbo, e que a polarização dê lugar a uma sociedade mais complexa, plural e democrática ao debater as soluções para seu futuro.