O que está em jogo na Colômbia?

Sylvia Colombo

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Desde o ponto de vista comum do brasileiro médio, países como a Colômbia estarão sempre ligados a uma arruaça sanguinária sem muito razão de ser e ligada a um subdesenvolvimento a que nós, brasileiros, não tivéssemos muito o que ver. Desse ponto de vista, entender porque dois projetos políticos até certo ponto semelhantes estão agora numa oposição tão grande nas eleições presidenciais fica realmente meio difícil e até parece um pouco caricato, folclórico. Porém, basta olhar com um pouco de detalhe e seriedade para a história da Colômbia _que tem muito em comum com a do Brasil_ para entender que o que estamos vendo é, nada mais nada menos, aquilo que Gabriel García Márquez retratou em seu clássico “Cem Anos de Solidão”. Uma história vertiginosa e que se repete e que não parece ter saída. Que reproduz e consome gerações e gerações de homens e mulheres que parecem perpetuar valores, vícios e uma inescapável solidão. E que estão, de certo modo, presos numa engrenagem gigante que os condena à morte e ao pó.

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Mas o que essa aparente divagação histórico-literária explica desse enfrentamento entre o atual presidente, Juan Manuel Santos, e Óscar Iván Zuluaga, o novo apadrinhado de seu ex-criador, o caudilho direitista Álvaro Uribe? Muito.

Desde a Independência, nos anos 20 do século 19, a Colômbia se viu cindida entre conservadores e liberais. O velho conflito, tão comum em toda a América Latina, entre os que queriam manter os privilégios de sangue, propriedade e religião católica, contra os que tinham ideias mais progressistas, laicas, de livre mercado e de direitos civis independentes, na Colômbia mostrou-se muito bem desenhado desde cedo. Está por trás não só das obras de Gabo, mas de toda a história do país. A literatura é apenas uma maneira de entrar nesse tema e humanizá-lo.

A foto do alto deste post mostra os meninos soldados da terrível Guerra dos Mil Dias (1899-1903), em que essas duas forças se enfrentaram. Resultou na morte de mais de 100 mil pessoas e com a separação da Colômbia do Panamá, com o dedo dos Estados Unidos por trás. A cisão do país arrastou-se pelo século 20, com diversos efeitos. Outro deles ocorreu em 9 de abril de 1948, quando o líder liberal Jorge Eliecér Gaitán (foto abaixo) foi assassinado à queima-roupa em pleno centro de Bogotá. As razões nunca ficaram muito claras, até porque o assassino foi agarrado por uma turba enraivecida na primeira esquina, agredido, levado cambaleante pelas ruas da cidade e morto. Nunca se pôde descobrir sua real motivação ou quem teria encomendado a morte. Sabe-se que a cidade viveu seus dias mais dramáticos, o chamado Bogotazzo, com incêndios e quebradeiras de lojas, edifícios e casa, além de assassinatos, numa onda de sangue e intolerância que durou mais de dez anos.

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Gaitán era um populista, e tinha uma linguagem que o aproximava dos trabalhadores. Num país que crescia economicamente, uma nova classe tentava ascender, mas não encontrava espaço por conta da aristocracia que governava o país desde os tempos da Colônia. Gaitán representava essa via de acesso. Quando as pessoas viram que esta havia sido para sempre cortada, a violência irrompeu e se impôs. O saldo final do período, que ficou conhecido como La Violencia, é de mais ou menos 300 mil mortos.

Num cenário assim, de predominante bloqueio às vias de participação e com a mão-forte dos valores conservadores e liberais dominando a cena política, a esquerda encontrou seu meio de participação política por meio da guerrilha. E só por meio dela. O nascedouro das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) está nesse conflito socio-ideológico e também muito ligado à questão agrária. Na origem da guerrilha estava a reivindicação, jamais atendida, de uma reforma agrária. Que se já era inviável então, agora mais do que nunca, uma vez que a guerrilha deixou a militância ideológica estrita e se transformou em cartel criminoso. Qualquer tentativa de se criar um partido político de esquerda mais equilibrado foi desestimulada e desacreditada pela existência da guerrilha.

Assim, conservadores e liberais atravessariam o século fazendo acordos para revezarem-se no poder até que, em 2002, um liberal dissidente, Álvaro Uribe, assumiu com ares de caudilho populista, mas com uma posição bastante dura e restrita com relação ao bandoleirismo e a luta armada no interior do país. Uribe governou de 2002 a 2010. Em seu governo, para acabar com a guerrilha, usou do poder bélico do Estado, fez acordos com os paramilitares e atacou até praticamente jogar no chão a estrutura das Farc.

Converse com um colombiano de classe média (alta ou baixa) qualquer, pirncipalmente nas províncias. Praticamente todos vão justificar as ações de Uribe. “São fora-da-lei, contra as instituições, contra a Justiça”, eu tentaria argumentar com um taxista em Medellín. A resposta, a clássica e infelizmente encontrada no Brasil nos dias de hoje:  “mas bandido tem que tratar assim. Mata. Ou você vai deixar que aconteça com uma filha sua?”. Num país com esse trauma histórico de divisão sangrenta, falar de instituições, de Justiça, de gestos diplomáticos, não funciona. Pelo menos não agora.

O que se vê nos dias de hoje, portanto, está enraizado na cultura política colombiana. Há a Colômbia conservadora, católica, que acredita nos laços de sangue e honra mais do que acredita nas leis. A essa está vinculada a figura de Uribe e o imaginário que ele agora maneja. Em grandes cidades como Bogotá, está uma outra Colômbia, a de Gaitán, que acredita em liberdades e direitos civis, na aplicação da lei e no fortalecimento das instituições. Uma Colômbia que acredita também na diplomacia e na negociação. E cujo retrato mais emblemático é a tentativa de Santos de fazer a paz por meio de um grande acordo com o inimigo _a proposta é conceder anistia e representatividade no Congresso. No momento em que Santos apareceu com isso, a outra Colômbia acordou e disse: “pare”. O voto em Zuluaga representa o movimento dessa grande maquinária histórica.

O enigma político que se impõe a partir desse momento se refere não a essas duas Colômbias, que são identificáveis hoje aqui assim como eram no fim do século 19. Mas essa Colômbia que está assistindo ao que está acontecendo, sem se posicionar por enquanto. A abstenção na votação deste último domingo foi de 60%. Espantosamente grande e recorde na história do país. Significa que essas pessoas querem uma nova alternativa? Qual é? Ou após as duas semanas até o segundo turno, de campanha acusatória e de baixo nível, vão acabar apenas optando por um lado ou por outro? É desalentador, mas reforçaria a ideia de repetição que marca a trajetória colombiana. Ou não. Ou algo surgirá por meio da voz dos calados e dos que votaram em branco. Resta saber se algum dos políticos na disputa, ou fora dela, tem habilidade para escutar e transformar isso numa proposta para um futuro, nem que seja a longo prazo.