Governo argentino avança sobre a Esma

Sylvia Colombo

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A Escola Mecánica da Armada é um conjunto de edifícios altivos e sombrios, localizados num imenso parque, próximo ao Río da Prata, em Buenos Aires. Ali funcionou o centro clandestino mais ativo da ditadura argentina (1976-1983). Ali selecionavam-se os prisioneiros que seriam levados às salas de tortura, os que seriam jogados dos aviões ao mar nos “voos da morte”, sedados para que não boiassem, dali saíram centenas de bebês cujas mães haviam sido mortas, entregues a famílias de militares ou a gente “de confiança” do regime.

Nos últimos anos, a Esma funcionou como um centro cultural comprometido com a memória. Concertos, exposições e homenagens, ainda assim polêmicas, pois há os que defendem que nem mesmo isso deveria ocorrer ali depois de tanto sangue e horror, e que o ideal era manter um silêncio que atravessasse os tempos vindouros como forma de honrar o sofrimento.

Sob a asa do governo municipal, a Esma funcionava como local de reflexão e de ponto de encontro de trabalho dos grupos ligados à defesa dos direitos humanos. Podia-se dizer que de forma mais ou menos independente. A sutil invasão do Estado nacional, porém, foi se fazendo ver nos últimos anos, por meio de instalação de grupos abertamente de apoio ao kirchnerismo, ligados à agrupação La Cámpora, pela escolha de artistas comprometidos com o governo e por macabros “asados”, ou churrascos, feitos em datas festivas e que contavam com a presença de ministros de Estado. O mais abominante deles foi realizado numa festa de fim de ano, comandada pelo ministro da Justiça, Julio Alak. A esses rituais que foram considerados insultos aos que ali morreram de forma violenta, houve generalizada rejeição por parte da sociedade.

Mas eis que estamos praticamente no último ano de governo de Cristina Kirchner. E uma gestão que se caracterizou por atuar de forma intensa e partidária no campo dos direitos humanos voltou a tomar uma decisão arbitrária nesse sentido. Se por um lado os Kirchner promoveram uma vasta onda de julgamentos, derrubando leis de anistia e levando aos tribunais diversos estamentos dos órgãos de repressão, por outro fizeram uso político dessa empreitada, muitas vezes movida mais por um desejo de vingança do que de Justiça propriamente dita, diferente das iniciativas levadas à cabo logo depois da redemocratização do país, em 1983, durante o primeiro governo democrático, de Raúl Alfonsín.

Na Justiça de então, responderam por seus crimes os dois lados em confronto, dando-se mais peso, corretamente, à responsabilidade do Estado e do alto comando da ditadura, que cometeram crimes de lesa humanidade. Porém, foram levados aos tribunais igualmente pessoas que cometeram atrocidades travestidas de ação política, ultrapassando a causa mais do que nobre da resistência à ditadura, como o líder montonero Mario Firmenich, cabeça de sequestros, execuções e justiçamentos, hoje exilado sob proteção do governo kirchnerista na Espanha.

Na Justiça de agora, que tem os méritos inegáveis de haver colocado preso o ex-ditador Jorge Rafael Videla, morto no ano passado, e tantos outros, o fator ideológico, porém, predomina, como reforçou num famoso artigo o pensador búlgaro Tzvetan Todorov.

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Num evento marcado pelo intenso clima político, a Esma foi transferida da cidade ao Estado Nacional. Foi mais um golpe na independência que um dia houve entre essas instituições e o Estado. Associações como as Mães da Praça de Maio, que reúne mães que procuram seus filhos, as Avós, que buscam os bebês desaparecidos, e H.I.J.O.S., formada por filhos de pais mortos no regime, há muito são marionetes nas mãos do governo.

As nobres exceções, que são raras, como a chamada Línea Fundadora, grupo dissidente das Mães, é uma delas. Na cerimônia em que a Esma passou para as mãos de Cristina, Nora Cortiñas (foto abaixo), sua líder histórica, protestou. Cortiñas é desafeta de Hebe de Bonafini, transformada em sargenta kirchnerista da vingança. Sua maior preocupação é menos com relação à propaganda política que será feita a partir de agora com a memória dos mortos ali, mas com o fato de que investigar-se o passado, promover novas interpretações críticas e entender essa imensa ferida na sociedade argentina, ficou para um segundo plano. Senão desapareceu por completo, pois os envolvidos com os episódios vão ficando cada vez mais velhos e desaparecendo.

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Quando Néstor Kirchner tirou da parede do Colégio Militar a foto de Videla, todo mundo aplaudiu. Obviamente há muito de positivo em reconhecer, julgar e punir os crimes de homem que esteve por trás de crimes tãos hediondos. Mas daí a começar a apagar seus vestígios, o contexto do que aconteceu, transformando os que foram soldados de uma resistência em meras vítimas, é empobrecer o debate e deixar os fatos à mercê de uma manipulação com fins políticos, eleitoreiros. Não é para menos, em alguns meses, começa uma nova campanha eleitoral, e o kirchnerismo, se não tem candidato próprio, vai querer passar um pano sobre o que fez de mal e tratar de escapar de responder judicialmente por seus erros. O discurso dos direitos humanos transforma-se em peça chave para lograr seus objetivos.