Peru profundo

Sylvia Colombo

Passei os últimos dias viajando pela região andina do Peru. Estive em algumas pequenas cidades da serra, todas em geral muito carentes, mas com centros históricos suntuosos que ainda lembram o fausto do Vice-Reino do Peru, um dos mais poderosos pólos da colonização espanhola em seus primeiros tempos. É curioso comparar essa zona com o interior de um país como a Argentina, porção esquecida pelos espanhóis então, e até hoje dando mostras de um abandono que perdurou durante a história republicana e que vem até a atualidade. O contraste entre o povoadíssimo interior do Peru, onde logo encontrou-se ouro e montou-se uma eficiente empresa de exploração, e o da Argentina, ainda hoje despovoado e entregue a caudilhos locais e à sabedoria natural dos “gauchos” é evidente e com forte reflexo no modo como a população desses locais vive nos dias de hoje.

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Uma cena que vi ontem, porém, resume vários elementos que compõem a realidade do Peru, país que hoje tem excelente desempenho econômico (PIB crescendo a 5% neste ano, maior taxa da América Latina), mas cuja maioria da população vive praticamente sem saber disso, com pouco acesso a direitos básicos e poucas perspectivas de melhorias de vida, pior, tendo os recursos naturais ao lado dos quais viu sua cultura florescer, ameaçados pelo avanço de mega-mineradoras e hidrelétricas. No centro de uma dessas cidades, ontem pela manhã, cerca de 500 indígenas protestavam na “plaza de armas” local. Não era uma manifestação urbana, com gente convocada por redes sociais, conectada por WhatssApp e com gritos de guerra irônicos e vigorosos. Era um protesto silencioso, de gente que fala pouco em seu dia-a-dia e tem outra relação com a terra, com o tempo e com o próximo. Os homens vinham à frente, as mulheres atrás, ou mesmo aguardavam sentadas nos bancos da praça, tecendo algo como se a vida tivesse de seguir com ou sem a nobre causa.

A manifestação era contra, justamente, uma mineradora estrangeira instalada em seu “cerro”, que segundo eles desviara o curso da água e deixara um fino filete, ao que parece contaminado, abastecendo a região. Ficaram ali sob um sol forte e um vento cortante por um par de horas. Era no meio do dia. Ao redor, nos balcões dos edifícios públicos coloniais, que antes pertenciam à prefeitura, à chefatura de polícia e ao escritório de representação comercial do império, instalam-se hoje restaurantes metidos a rústicos, mas com menus estrelados e preços nas alturas. São um efeito do êxito internacional da gastronomia peruana, que fez aumentar o turismo local e transformou os costumes alimentares e ingredientes dos indígenas das serras em cozinha de alto luxo.

Num desses locais, anunciava-se um cardápio “pré-incaico”, com menu a preço fixo de US$ 60, o outro era parte de um franchising de uma das marcas do renomado chef peruano Gastón Acurio, que faz “fusion” da comida local com a de várias regiões do mundo (os restaurantes de Acurio também estão em São Paulo e em outras capitais latino-americanas). Por fim, uma loja de produtos naturais locais vendia em embalagens elegantes “cookies” feitos de quinoa e sucos de “chia”. Em reportagem recente do jornal inglês “The Guardian”, anunciava-se que a quinoa, usada desde temos ancestrais na alimentação indígena, já atingiu preços que a tornam praticamente inacessível hoje aos indígenas que a plantam e colhem.

Os restaurantes estavam cheios de turistas, especialmente europeus e australianos. Um imenso escritório do órgão turístico peruano atestava a importância que a atividade tem na economia local. “Cuide dos turistas, e nosso país cresce”, diz o cartaz logo na entrada. A se julgar pela quantidade de idiomas e variedade de procedências a olhos nus, a máxima está sendo obedecida e a imagem do país no exterior é certamente positiva por conta disso. Mas, precisa mesmo fazer a menininha indígena andar pela rua levando por uma cordinha uma vicunha-bebê com o anúncio de uma loja de roupas? Encravados nas pedras coloniais do casco histórico, estão pousadas de luxo e lojas que vendem produtos de alpaca e vicunha a preços exorbitantes _é curioso que basta andar duas quadras para qualquer lado, saindo do centro temático, para encontrar lojas em que os nativos compram e vendem, ali os mesmos casacos, jaquetas, e cachecóis saem por um quinto do valor.

Invisíveis para os turistas, que tiravam fotos das igrejas e casarões e andavam com sacolinhas, a manifestação indígena não tardou em dissipar-se. Acompanhei-os até a saída da cidade, onde tomaram ônibus ou foram caminhando mesmo. Sua vila estava a 16k dali. Era hora de partir para preparar a festa da noite, disse-me uma senhora. Que festa? Perguntei. “A de início da Semana Santa, somos todos muito católicos”. A mão pesada dos colonizadores, com o sistema econômico e a religião que aqui impuseram há alguns séculos, a ferro e fogo, segue vigorosa. Nem sempre justa.