Copa de 78 vai à Justiça na Argentina

Sylvia Colombo

Em coluna publicada na Folha ontem, o ídolo da seleção tricampeã brasileira de 1970 Tostão desabafou. Disse que se sente orgulhoso por ter feito parte daquele grupo, mas que se incomoda com o fato de o troféu ser mencionado como um dos momentos altos da ditadura militar brasileira (1964-1985). De fato, dos manuais de história aos documentários e teses sobre o período, a conquista é elencada junto ao “milagre econômico”, ambos ocorridos durante o governo Médici, como um momento de suposto apogeu de um regime que, nos porões, torturava e matava. Tostão explica que, como outros, era contra a ditadura, e que não havia, na concentração, o clima de pressão sugerido por interpretações da época. O atacante coloca-se contra a ideia de que o futebol seria um “ópio do povo”, então, e que todo governo, seja ditatorial ou não, faz algum tipo de uso político de uma vitória expressiva como a que aquela brilhante seleção alcançou.

Seu desabafo não é único. Aqui ao lado, na vizinha argentina, a Copa de 1978 segue sendo um assunto delicado e sujeito a investigações. Sediada pelo país durante os anos mais terríveis do regime militar (1976-1983), o Mundial foi visto e apropriado pelos militares como uma maneira de desviar as atenções da opinião pública. Era sabido já que a repressão desaparecia e matava, mas ainda não se fazia a ideia de quantos haviam sido vítimas das torturas, dos voos da morte (quando militantes sedados eram arremessados ao Rio da Prata) e das execuções. A final, em que a Argentina venceu a Holanda, foi disputada no Monumental de Nuñez, muito perto do prédio da ESMA, a temida escola da marinha, usada como centro clandestino de repressão. A ditadura argentina matou mais do que a brasileira, os números de estimativas variam entre 9 e 30 mil pessoas.

Os jogadores argentinos daquele time até hoje se lamentam do fato de serem vistos hoje como um instrumento nas mãos do cruel ditador Jorge Rafael Videla, morto no ano passado. Há os que dizem que o futebol não tem nada a ver com a política, os que ressaltam que a Copa deu alento a uma população amedrontada e os que repudiam a pressão, nesse caso realmente exercida, dos militares sobre os jogadores. No dia da final, Videla pessoalmente foi ao vestiário, numa atitude de intimidação. Pairam, ainda, sobre o regime, as acusações de que o resultado vitorioso com o Peru, que garantiu a classificação argentina, houvesse sido orquestrado pelos militares. Alguns dos jogadores peruanos relataram o clima de pressão, e alguns conseguiram contratos suspeitos para jogar em grandes times da Europa. O caso nunca foi totalmente esclarecido, mas será julgado, ainda neste ano, por um tribunal federal que examina os crimes relacionados à Operação Condor (sistema de integração da repressão em países do Cone Sul). Nos últimos tempos, foram surgindo nas investigações argentinas, vários pontos de contato com o regime autoritário peruano, o que integraria o país ao esquema armado pelas ditaduras do Brasil, da Argentina, do Uruguai e do Chile.

Mais novidades devem surgir neste ano. Para entender melhor o ocorrido, vale ver o bom documentário realizado pela TV argentina, “Mundial 78 – La História Paralela” (2003). Também, é possível consultar boa bibliografia sobre o assunto, destacando o livro “Fuimos Campeones” (Edhasa), de Ricardo Grotta, publicado em 2008.