Acervo de Eloy Martínez revela romance inédito
No ano em que o escritor argentino Tomás Eloy Martínez (1934-2010) estaria completando 80 anos, seu acervo está sendo aberto ao público, nada menos do que no mesmo endereço onde trabalhou Jorge Luis Borges entre os anos de 1937 e 1946. No mesmo local onde funciona a biblioteca Miguel Cané, instalou-se a Fundación Tomás Eloy Martinez, comandada por um de seus sete filhos, o jornalista Ezequiel, também editor do caderno “Ñ”, do “Clarín”.
Lembrar Martínez agora é mais do que homenagear o autor de clássicos do romance político latino-americano, como “Santa Evita” (1995) e “O Romance de Perón” (1985). O escritor representa todo um período profícuo e influente do jornalismo argentino que está desaparecendo, perdendo-se entre a crise mundial do ofício e a guerra que enfrenta contra o atual governo. Nascido em Tucumán, Martínez atuou nos principais meios argentinos e participou, ao lado do mítico Jacobo Timerman, da fundação do jornal “La Opinión”, que retratou de forma aguda os embates ideológicos, a violência e os bastidores dos anos anteriores ao regime militar (1976-1983).
Iniciados os anos de chumbo, Martínez partiria para o exílio, na Venezuela e na Espanha, e só voltaria a seu país nos anos 80, ainda assim dividindo suas atividades ali com aulas nas universidades de Maryland e na Rutgers (Nova Jersey). No período em que esteve no exterior, seguiu exercendo o jornalismo e a literatura. Em Caracas, editou a seção cultural do “Diario de Caracas”, incrementando-a com entrevistas históricas com Ernesto Sábato (1911-2011), Mario Vargas Llosa, Augusto Roa Bastos, entre outros. Na Colômbia, ajudou a fundar, junto a Gabriel García Márquez, a Fundação Novo Periodismo (1917-2005). Por fim, em Madri (Espanha), realizou uma série histórica de entrevistas com o general Juan Domingo Perón, então exilado.
Eloy Martínez era um amigo do Brasil. Vinha frequentemente para cá e travou amizades, principalmente depois do trágico acidente que matou sua mulher e deixou-o ferido. Seu romance “O Voo da Rainha” (2002) tomava como inspiração o caso Pimenta Neves [diretor do ‘Estado de S.Paulo’ que assassinou a namorada]. Foi diagnosticado com câncer pouco depois da morte da mulher, e lutou contra a doença por muitos anos, o que não o impediu de continuar viajando e de se casar mais uma vez, já em seus últimos anos.
A boa notícia que vem da abertura de seus arquivos é o encontro com um inédito, “El Olimpo”, romance no qual estava trabalhando e que agora está nas mãos do filho, que ainda não se decidiu se o publicará ou não. Trata-se de uma trama que se passa durante a ditadura no temido centro clandestino de detenção homônimo.
Das várias entrevistas que tive a oportunidade de fazer com ele, minha preferida é esta aqui, que foi publicada num caderno especial sobre os 500 anos do “Dom Quixote”. Nela, Martínez discutiu literatura e a relação entre arte popular e erudita.
“Todos nós nascemos de Cervantes”
DA REDAÇÃO
Para o escritor argentino Tomás Eloy Martínez, autor de “Santa Evita” e “O Romance de Perón”, os latino-americanos tiraram da obra do espanhol a inspiração para o realismo mágico e a idéia de literatura como felicidade. “Todos nascemos de Cervantes”, diz ele.
Diretor do programa de estudos latino-americanos da Rutgers University, de Nova Jersey, Martínez falou à Folha, por telefone. (SYLVIA COLOMBO)
Folha – Como Cervantes influencia a literatura latino-americana?
Tomás Eloy Martínez – Todos nascemos de Cervantes. Assim como Cervantes nasce das novelas de cavalaria, os latino-americanos nascemos de Cervantes e das crônicas das Índias. O realismo mágico, o maravilhoso, já estão ali. A mulher como figura emblemática, sublime e inalcançável, e também a mulher como encarnação do pecado, a prostituta. Os dois extremos da visão da mulher na literatura masculina vêm de Cervantes. Também nele está um elemento importante para a literatura latino-americana, que é a escritura como felicidade. Isso se encontra até em autores infelizes ou desgraçados, como Euclides da Cunha, ou em outros, como Rubem Fonseca, Nélida Piñon ou Chico Buarque.
Folha – Cervantes contribuiu para criar a sensibilidade moderna?
Martínez – Por um lado, Cervantes foi um símbolo da Contra-reforma que estava no apogeu na Espanha. Por outro, “Dom Quixote” respira um ar de liberdade que é moderno. Quase não há experiência, nem verbal nem estrutural, do romance moderno que não esteja incluída em “Dom Quixote”. Todos as grandes descobertas do romance estão ali.
A crítica norte-americana se surpreendeu com o fato de que, em “A Noite do Oráculo”, de Paul Auster, há uma história que se interrompe e nunca mais retoma. Isso foi visto como uma descoberta experimental. Mas é algo que já está em “Dom Quixote”, no episódio do encontro do cavaleiro com o biscainho.
Folha – Mas esse episódio depois volta a ser relatado, na versão de um outro narrador.
Martínez – Sim, mas nunca se sabe exatamente o que aconteceu depois que o biscainho alçou a espada. A partir daí, é tudo incerto. A história fica interrompida. Outra característica moderna do livro é o fato de se tratar de um romance dentro de um romance, e de contar com a presença do autor dentro do romance. E, ainda, temos os personagens discutindo entre si o que haviam feito antes. Tudo isso é pura inovação, revestido de uma enorme simplicidade. A narração é feita com naturalidade, como se essas experimentações fossem parte do relato. Uma das riquezas do romance é justamente a de que tudo o que é novo passa inadvertido.
Folha – Por que Cervantes, de início, não foi reconhecido?
Martínez – Cervantes foi menosprezado em seu tempo. A figura da corte, o escritor por excelência, naquele momento, era Lope de Vega (1562-1635). Acho que a explicação está na trajetória turbulenta de sua vida.
Folha – Não teria relação com a divisão entre arte popular e erudita?
Martinez – Cervantes era um escritor popular da mesma maneira que o brasileiro Lima Barreto (1881-1922) pode ser chamado de popular em contraponto ao contemporâneo Machado de Assis (1839-1908).
Nesse sentido, Cervantes foi popular, e tido como escritor menor. Não integrava a “grande arte” que a Espanha via em Lope de Vega, Calderón ou Gôngora. Perto deles, “Dom Quixote” era entretenimento. Uma obra que excitava a fantasia, mas de uma maneira simples, por meio dos sentidos dos camponeses. Há uma confusão entre popularidade e pequenez. Os críticos ou os intelectuais costumam supor que o que é popular é pequeno, carece de valor.
Folha – E esse é um debate bastante atual.
Martinez – Sim, é a discussão de que sempre padeceu a literatura. Acredito que, a partir de “Dom Quixote”, não há grande obra da literatura que não tenha sido popular. “Ulysses”, de Joyce, é uma obra complicadíssima mas que encontrou a popularidade. Machado, que é complexo, também foi um escritor popular.
Como toda regra, essa deve ter exceções. Mas Cervantes inaugura o momento em que uma grande obra é popular. Logra a aceitação de uma grande maioria. Assim como Shakespeare.
Folha – Pode-se compará-lo ao contemporâneo Shakespeare?
Martinez – Sim, pela amplitude e pela força. A literatura tem, e isso o vê muito bem Harold Bloom, vozes menores, pequenas, que nunca podem alcançar a amplitude da grandeza literária. São importantes, mas trabalham em um tom menor. E há obras de uma força enorme, como as de Shakespeare, Homero, Cervantes, Dante, Borges, e que alcançam um ímpeto sinfônico de uma enorme amplitude. Por meio desses autores podemos ver os destinos individuais interatuando com os destinos coletivos. As paixões se movendo no compasso da História.