Arlt e o fascínio pela criminalidade portenha

Folha

A proliferação de selos independentes é uma tendência no variado mercado editorial argentino, em expansão apesar da crise econômica que vive o país. Sem recursos para ter em seus catálogos autores-estrela, cooptados por mega editoras, como a Santillana e a Alfaguara, as pequenas têm apostado em correspondências ou escritos inéditos e esquecidos de grandes nomes, que devido ao tempo passado estão isentos de cobrar direitos de autor.

Um escritor que tem voltado às bancadas de frente das livrarias é o Roberto Arlt (1900-1942), uma espécie de maldito que narrou a vida nos becos, ruelas e cafés do submundo portenho, e morreu de forma repentina de um ataque do coração aos 42 anos de idade. Arlt já havia sido resgatado no meio do ano, com o lançamento, na Argentina e no Brasil, de suas “Águas-fortes Cariocas”, coleção de crônicas publicadas no jornal “El Mundo” em 1930, quando o autor viveu alguns meses no Rio de Janeiro. Ali, encantou-se com a música e os hábitos da sociedade, até transformar-se num feroz crítico do provincianismo brasileiro e desejar ardentemente voltar à sua boêmia e cosmopolita Buenos Aires.

Agora, chega às livrarias “El Facineroso”, reunião inédita de crônicas policiais que Arlt escreveu quando começou no jornalismo, como repórter especial dos jornais “Crítica” e “El Mundo”, nos anos entre 1927 e 1929.

A Argentina vivia tempos de otimismo e de transformação. O país havia crescido mais de 40% em cinco anos, tinha virado um celeiro para o mundo e Buenos Aires crescia e tornava-se grandiosa do ponto de vista arquitetônico, devido aos rendimentos da exportação de carne e outros bens. Proliferavam os cafés e restaurantes ao estilo europeu. Enquanto isso, a imprensa se fortalecia, com um bom jornalismo de cidades baseado em crônicas, e político, que acompanhava a crescente influência da classe média nas decisões do país. Foi, entre outras coisas, a chamada década de ouro do radicalismo, único momento da história recente em que a União Cívica Radical, hoje segunda força política na Argentina em relação ao peronismo, prevaleceu entre a preferência dos argentinos com medidas que favoreciam os trabalhadores. Esse período encerrou-se de forma dramática, quando um golpe militar derrubou o popular presidente radical, Hipolito Yrigoyen, em 1930.

Nos cantos escuros dessa Buenos Aires perdida no tempo vagava Arlt, com um terno escuro e um bloco de notas nas mãos. Procurava boas histórias e acreditava em cada mensagem que chegava à Redação indicando um drama humano, um crime ou um suicídio.

O jornal “Crítica” tinha uma posição editorial original, em vez de retratar o criminoso, investia na riqueza narrativa da investigação dos acontecimentos. Competia com outros dois que apostavam forte na crônica policia, o “La Razón” e o “Última Hora”.

As crônicas reunidas no volume expunham o estilo do diário, de um sofisticado sensacionalismo. Em “Vou me suicidar, vivo na rua Uruguay, 694”, Arlt conta a história de uma italiana de 30 anos que ligou para o jornal para pedir uma cobertura de sua própria morte. Arlt e o fotógrafo que o acompanhava conseguem interceder e evitar o suicídio em pleno centro portenho. Em “Deu cianureto a seus filhinhos pela mamadeira e terminou sua obra trágica suicidando-se”, o escritor narra a história da mãe que matou os filhos num sufocante apartamento.

Também se destacam “Tomou cianureto depois de ajeitar a tumba do marido”, sobre a senhora de 71 anos encontrada morta num cemitério da periferia, e “Os paraísos de ópio proliferam em Buenos Aires”, sobre a relação dos imigrantes chineses com a disseminação da droga na capital.

Arlt sempre foi um pária nas letras argentinas, não frequentou os círculos e era menosprezado por “estrelas” como Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares. Seu olhar oblíquo e quase estrangeiro –era filho de pai alemão e mãe italiana– era crítico dos costumes e controverso –muitas vezes seus textos expunham um arraigado racismo e conservadorismo político–dizia, entre outras coisas, que o povo necessitava de tiranos.

Num momento em que Buenos Aires convive com alarmantes e crescentes índices de criminalidade, alimentados pela crise e pela inflação de mais de 25%, ler Arlt é conhecer e entender melhor o lado escuro do luxo e da sofisticação tão associados a essa metrópole. É também uma forma de penetrar no fascínio que marginais, bêbados e estafadores criaram em toda uma escola literária e nas letras dos tangos. Tomara que alguma editora brasileira também se entusiasme com esse título.