Livro explica a agonia de El Salvador

Sylvia Colombo
Members of the MS-18 gang incarcerated in Izalco mens' prison in El Salvador pose for a portrait inside their overcrowded cell.
Membros da gangue Mara Salvatrucha, uma das principais atuantes hoje em El Salvador, Honduras e Guatemala

Todos os dias, mais de mil pessoas deixam Guatemala, Honduras e El Salvador em busca de alguma oportunidade ao norte do continente. Em seu primeiro livro, “The Beast” (Verso), o jornalista salvadorenho Óscar Martínez, 33, contou como é viajar pela rota dos imigrantes centro-americanos através de território mexicano. A obra, infelizmente não traduzida ao português, impacta ao dar cara, nome e história às cifras sempre altas que surgem nos noticiários quando se fala em imigração ilegal. Martínez conta como estupros, assassinatos, traição e extorsões compõem o pesadelo dos que tentam cruzar a fronteira mexicana com os EUA.

Martínez, que trabalha para o jornal digital “El Faro”, ganhou projeção internacional com sua obra, levou-a para ser apresentada nos EUA e em vários países latino-americanos, discutiu as histórias de seus personagens com outros escritores e calou plateias em festivais literários, ávidas por conhecer melhor sua experiência. Mas, como ele conta agora na introdução de “A History of Violence – Living and Dying in Central America”, falhou toda vez que lhe perguntaram: “O que se pode fazer para resolver isso?”.

Sua iniciativa, portanto, foi usar as únicas ferramentas de que dispunha para entender o problema e explica-lo _o máximo (e já é muito) que pode fazer como jornalista. O livro, que agora chega às livrarias nos EUA, é um retrato daquilo de que os centro-americanos estão fugindo. São 14 crônicas escritas entre janeiro de 2011 e de 2015, em viagens do jornalistas a esses países, e publicadas no “El Faro”. Se primeiro Martínez explicou como era o trajeto dos imigrantes, agora foca nas razões que fazem com que uma pessoa, uma família, ou mesmo um grupo de crianças desacompanhadas, prefira deixar sua casa e tudo o que tem para trás e preferir um destino incerto e cheio de perigos, mas que ao menos oferece alguma esperança.

A violência está longe de ser um problema novo na América Central, mas agora, a situação no chamado “Triângulo do Norte” atingiu outro estágio, devido ao fim de uma polêmica trégua pactada entre governo e as principais gangues criminosas que, por algum tempo, garantiu que o índice de assassinatos caísse, ainda que a extorsão e a disputa de territórios continuasse. O protagonismo das gangues, especialmente as duas maiores, Mara Salvatrucha e Barrio-18, começou a mostrar-se nos anos 1990, quando uma política de deportações comandada pelo governo Bill Clinton devolveu aos países centro-americanos milhares de imigrantes. Essas pessoas, ao chegar em países de economias debilitadas, sem muitas oportunidades, com grande desigualdade social e com tradição de ser uma rota de narcotráfico desde a América do Sul aos EUA, logo passaram a preferir entrar em grupos criminosos do que tentar buscar empregos formais e legais, então praticamente inexistentes.

O jornalista Óscar Martínez, do "El Faro" (Foto Divulgação)
O jornalista Óscar Martínez, do “El Faro” (Foto Divulgação)

O que se tem hoje é um quadro assustador. As gangues têm, juntas, mais de 70 mil membros, mais o exército informal de gente que trabalha para eles como intermediários, mensageiros, coletores de extorsões, e temos os países praticamente tomados, com territórios imensos em que as Forças Armadas ou o governo não têm como agir. O foco principal do livro é El Salvador, onde o problema é muito grave e mais próximo a Martínez, mas os outros países do Triângulo estão contemplados.

Analistas e especialistas no tema, como o jornalista norte-americano Jon Lee Anderson, que cobriu in loco a guerra entre guerrilhas e regime militar em El Salvador entre 1980 e 1992 dizem que a situação atual está próxima a atingir o nível de brutalidade e violência daqueles tempos (quando morreram mais de 75 mil pessoas). O país de apenas 6,3 milhões de habitantes tem hoje uma taxa de homicídio entre as maiores do mundo, cerca de 103 assassinatos por 100 mil pessoas. Honduras tem números parecidos.

Martínez organiza seu livro em torno de questões entre o geopolítico e o filosófico. A primeira parte trata da “solidão”, e as crônicas estão relacionadas à ausência do Estado e ao abandono das populações que vivem nas áreas afetadas. A segunda é dedicada à “loucura”, com histórias sobre como as sociedades ficam “doentes” em seus hábitos e reações em situações de violência e desamparo. A última parte chama-se “fuga”, e trata de como muitos acabam apostando por essa solução final a seus pesadelos _iniciando um novo.

 

O jornalista explica em detalhe como funcionam áreas em controle das gangues, como as extorsões são cobradas, como se implementam toques de recolher, como se armam esquemas de espionagem e como se forçam os limites das zonas de controle para aumentar a influência, e com isso a renda, das gangues. Diferentemente de países como Colômbia e Peru, El Salvador não produz drogas. A atividade que dá dinheiro aos criminosos, portanto, está na cobrança de taxas para usar rotas para o narcotráfico e da população em geral, para que simplesmente lhe seja permitido manter seu dia-a-dia. Segundo estimativas, mais 70% dos pequenos comerciantes salvadorenhos pagam propina a gangues. E quase todos os motoristas que querem usar as estradas que cruzam o país na direção norte. Os entrevistados vão de culpados a vítimas. Há ex-membros de gangues, sicários, policiais, comerciantes e prostitutas.

Martínez aponta para vários culpados. Um deles, o Estado, por não ter sabido negociar e manter a paz após a guerra civil, por fazer concessões em busca de tréguas com as gangues, e por permitir que a polícia e as Forças Armadas, hoje, usem recursos fora da lei e atuem sem protocolos, propagando e disseminando as torturas e mortes.

Outro culpado, segundo Martínez, são os EUA, por terem permitido a formação das gangues _as principais foram “fundadas” na Califórnia_ e depois ter promovido uma deportação em massa sem medir as consequências. O jornalista propõe que, quem duvide dele, faça uma simples pesquisa no Google para saber quantos milhões de dólares de “ajuda” os EUA deu a governos militares centro-americanos, ajudando a armar os países e cindir as sociedades. “Os EUA tem a ver com a pré-guerra, a guerra e a pós-guerra”, diz.

Martínez não poupa também os colegas jornalistas da imprensa internacional, por sua falta de seriedade e de regularidade na cobertura da guerra das gangues. “Muitos vêm apenas para fazer foto dos criminosos tatuados [uma marca da guerrilha] e não para entender e explicar o problema”, disse o autor em uma entrevista. O autor tem razão. Ao contrário do drama de refugiados sírios e das regiões afetadas pelo Estado Islâmico, ou dos conflitos no Oriente Médio, o pesadelo centro-americano é coberto apenas de forma esporádica e sem o devido rigor pela mídia internacional de modo geral.

Quando se está às vésperas de uma eleição norte-americana, na qual um dos candidatos tem como principal proposta construir um muro para impedir a entrada de pessoas que fogem de um horrível pesadelo, o livro de Martínez se faz mais do que necessário no debate.