E Cristina, ao final, preferiu Macri
Cristina Kirchner nunca se sentiu à vontade para eleger um sucessor, e não foram poucos os potenciais candidatos que surgiram durante seus oito anos de governo. Com todos, a presidente fez o mesmo. Primeiro, os incensou publicamente, enchendo-os de mimos e elogios. Depois, talvez assustada com a possibilidade de que passassem a encantar a população mais do que ela própria, os abandonou à própria sorte, às vezes criando-lhes situações difíceis em que alguns terminaram se afundando.
Foi assim com Martín Lousteau, primeiro transformado em ministro da Economia e incensado por Cristina até que a crise com os ruralistas, em 2008, complicou o cenário político e a presidente o entregou aos leões. Ficou famosa a cena em que o secretário de Comércio Exterior, Guillermo Moreno, então conhecido como o xerife da presidente, ameaçou cortar-lhe o pescoço, com gestual e tudo, em pleno ato público. Também aconteceu com o atual vice-presidente, Amado Boudou, para quem Cristina a princípio se derretia, mas que acabou sendo abandonado em meio a um escândalo de corrupção sobre o qual terá de responder sozinho. Um outro, ainda, foi Sergio Massa, que virou seu braço-direito e chefe de gabinete, no começo de sua gestão, mas com quem também se desentendeu. Massa acabou deixando a aliança e lançou-se por outra sigla nessa eleição. Conseguiu 5 milhões de votos, a maioria de peronistas descontentes, mas terminou em terceiro lugar. Também nessa lista pode-se contar Axel Kicillof, o atual ministro da economia, ex-queridinho de Cristina que chegou a ser cogitado como candidato à sua sucessão, mas que foi descartado.
Com Scioli, Cristina acabou fazendo o mesmo. Não era seu candidato ideal, por não ser kirchnerista e por representar uma ala mais à direita do peronismo. Acabou sendo, porém, sua única alternativa, uma vez que passou toda sua gestão desacreditando potenciais candidatos vindos do seio do kirchnerismo. No começo da campanha, Cristina apoiou Scioli publicamente, mas nunca com a convicção esperada. Com isso, o peronismo votou dividido, o que possibilitou a vitória de Macri.
O primeiro discurso que Cristina fez após o primeiro turno, em 25 de outubro, foi também seu ato oficial de abandono de Scioli. Cristina não o chamou pelo nome, e mais, disse com todas as letras que “simpatizava” com o opositor, Mauricio Macri. Em vez de tomar Scioli pela mão, e pedir de forma enfática o voto nele, Cristina preferiu ficar quieta, afastar-se. Scioli se transformou em mais um no time dos preteridos. Para o consultor e analista Sergio Berensztein, confirmou-se algo que se desenha desde as eleições legislativas de 2013, vencidas por Massa. “Diante da possibilidade de que Massa virasse um candidato com grandes chances de vencer as presidenciais de 2015, Cristina preferiu ajudar Macri, por não aceitar ser obrigada a entregar o poder a outro peronista.”
O voto peronista, que já estava dividido, então, rachou de uma vez, e os descontentes com o kirchnerismo não tardaram em abraçar Macri. Nas últimas semanas, foi ficando clara a opção de Cristina: que Macri ganhasse de uma vez. Ou porque a presidente irá preferir rearmar o kirchnerismo e consolidar-se como líder da oposição, ou porque quer ficar em bons termos com o eleito, e acertar um apoio discreto em troca de que não avancem, na Justiça, as causas contra ela (enriquecimento ilícito, irregularidades em seus hotéis no sul, escândalo Lázaro Báez).
Como vai ser a relação de Cristina com Macri agora é ainda uma incógnita, mas é interessante lembrar algumas passagens que mostram como os anos em que os dois conviveram na oposição, ela como presidente, ele como chefe de governo de Buenos Aires, tiveram momentos de discrepância, mas também pontos de acordo e de ação conjunta.
Se pronunciam-se de forma oposta quando se fala em investimento estrangeiro, impostos para o campo, relação com os meios, valorização (ou não) do passado, relações internacionais e participação do Estado na economia, Cristina e Macri tiveram pontos de inflexão, como os acertos para que o chefe de governo portenho pudesse aprovar mudanças em leis de zoneamento e obras urbanas que transformaram a cara de alguns bairros de Buenos Aires (derrubando várias casas históricas), ou a adoção de políticas de segurança no estilo linha-dura. Um campo nebuloso, e cheio de denúncias irregulares, é o dos jogos de azar, na cidade e no país, área na qual transitam empresários e figuras próximos a ambos.
Mas o que as pessoas geralmente se lembram são as anedotas: como os dois se olharam e se falaram nos encontros e em atos públicos. Sempre com um ar de ironia e muitas vezes de provocação de leve conotação sexual. A mais célebre foi a dos diálogos que tiveram em 2011, sobre a reeleição de ambos. Macri havia sido reeleito para o cargo de chefe de governo de Buenos Aires em agosto, e foi surpreendido pelo chamado da presidente para cumprimenta-lo _apesar de o seu candidato ser Daniel Filmus, o derrotado.
Cristina então lhe perguntou perguntou como estava, ao que Macri respondeu: “bem, estou de cueca”. Dois meses depois, quando a reeleita foi Cristina, foi a vez de Macri telefonar para dar os parabéns. “Me diga antes como você está?”, inquiriu Cristina. E ele brincou: “Então, de novo estou meio pelado, mas dessa vez estou de bermuda”. A história foi contada por Cristina com um risinho irônico no canto da boca, em sua primeira entrevista coletiva como presidente eleita, virando o hit da semana na imprensa e nas redes sociais (o vídeo vai abaixo, vale a pena).
Se Macri e Cristina terão, a partir de hoje uma relação de amor ou ódio, ou ambos, os próximos meses e anos irão mostrar. Ao ser perguntada, neste domingo (22) sobre se irá “manter um diálogo ou algo” com o presidente eleito, Cristina respondeu, com a mesma cara de provocação: “Não. Ele é um homem casado.”